As possibilidades para a praxis emancipatória no contexto brasileiro atual

Artur Júnior dos Santos Lopes

1 INTRODUÇÃO

“Vou lhes dizer as três metamorfoses do espírito: como o espírito se muda em

camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.”

(NIETZSCHE, p. 23)

Dentro da Luta por Reconhecimento de Axel Honneth podemos perceber em diversos momentos que a motivação para que a teoria seja colocada em prática vem do poder do sofrimento de fazer com que o agente social se coloque em movimento.

Observando a realidade brasileira podemos perceber que muitos sofrem. Ainda é possível verificar que poucos são os que buscam vencer os sofrimentos que lhes acometem. Assim é possível depreender que a luta por reconhecimento falha em algum momento dentro da sociedade brasileira. A pergunta é por quê? Por que falha a luta por reconhecimento na sociedade brasileira, em específico na sociedade brasileira de baixo rendimento financeiro? Pretendo relacionar a falha da Luta por Reconhecimento com incapacidade de estabelecer uma práxis emancipatória. Para que esta intenção seja alcançada, é necessário clarificar o que seja a práxis emancipatória a qual me refiro.

Falar sobre a práxis emancipatória não se mostra algo simples. Uma das dificuldades que experimentei foi encontrar material que sintetizasse este denso conceito. O desejo pela emancipação parece confundir-se com o próprio Processo do Filosofar. Por isso vou propor um conceito, e a partir daí tentar verificar-lhe a aplicabilidade.

Para cumprir meu intento tive de delimitar o tema. Assim procurei dentro do contexto ocidental, mais especificamente o contexto marcado pela difusão da Teoria Crítica tendo como principal ponto de referência o pensamento marxiano e o pensamento existencialista. Pensei o significado de uma práxis que leve a emancipação individual e que evolua do particular para o social. A extensão de minha proposta ainda é muito grande. Por isso voltei-me para as classes menos favorecidas do nosso país na perspectiva de delimitar ainda mais o escopo de pesquisa.

Dentro desta proposta procurei verificar quais os pressupostos necessários à emancipação. Parti para a pesquisa de quantas famílias de nosso país estão na condição de menos favorecidas e se as pessoas que compõem estas famílias cumprem os requisitos para a emancipação.

Me ajudaram neste trabalho os escritos de Bornheim, de Marx, Engels, Mészáros, Nietzsche, Platão, Honneth e Salonia. Busquei relacionar a práxis emancipatória com o próprio processo do filosofar, o que me pareceu muito produtivo, pois aqui pude colocar bases sólidas no pensamento. Agora sem mais delongas segue o desenvolvimento deste modesto trabalho.

Muito obrigado!

2 DESENVOLVIMENTO

Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que

importa é transformá-lo. (MARX e ENGELS, 2006, p. 120)

2.1 PRAXIS EMANCIPATÓRIA

Começo com questionamentos que a muito me inquietam: De onde vem o desejo emancipatório? O que é este desejo?

O conceito de Emancipação parece caro a Filosofia desde os tempos do classicismo grego. Digo isso pelo que lemos no sétimo livro da República de Platão, nas páginas duzentos e dez até duzentos e quatorze. Na alegoria da caverna percebemos claramente o tentador movimento dialético entre o “mundo das sombras” e o “mundo da realidade”. No processo descrito por Platão, temos alguém que é conduzido para o mundo da realidade, e que enfrenta inúmeras dificuldades neste processo.

No texto de Platão já percebemos que o movimento emancipatório é buscado por poucos, e que tal ação é dificultosa e em geral não é bem aceita pelos que vivem no “mundo das sombras”. Pelo pensamento de Platão é possível depreender que o mundo da realidade não é alcançável, apenas pode ser idealizado. Talvez aí resida um dos problemas desta teoria.

Mas imaginemos que este caminho fosse fruto da vontade do sujeito. Intriga-me a especulação do que poderia causar a motivação de buscar algo diferente do que existe na realidade momentânea e que existe apenas em um mundo de possibilidades? O que faz buscar o que está além? O que faz buscar o que ainda não é conhecido? O que é esta busca pelo que não está ao alcance imediato?

Muitas respostas são possíveis. Para Bornheim temos um processo que nos leva a estes questionamentos. Tal processo começaria com a admiração ingênua, passaria por uma experiência negativa, e culminaria com a significação e superação da experiência negativa.

Marx e Engels (2006) na página cento e vinte e quatro do seu texto apresentam o estranhamento do mundo, livre de verdades pré-concebidas, dogmáticas, como sendo parte fundamental da possibilidade de uma práxis emancipatória. E ainda na página cento e vinte e nove que: “A vontade move-se sob o impulso da reflexão ou da paixão.”

É necessário que se crie um novo mundo. Um mundo onde o não ao “tu deves” nietzscheniano possa ser dito. Onde o que está posto não seja a única possibilidade, que possamos refletir e encontrar novas possibilidades, plausíveis e aplicáveis.

Neste ponto é possível compreender minha citação de Nietzsche na introdução. Onde o camelo carrega as cargas mais pesadas, o leão prepara o caminho através de um solene não, mas apenas a criança é capaz de acreditar e efetivamente criar um mundo novo. Desta forma concebo que a práxis emancipatória é:

1. a capacidade humana de primeiramente impactar-se com a realidade;

2. depois, desconfiar das impressões que foram coletadas, negá-las e até mesmo se rebelar contra a realidade;

3. e por fim conseguir transcender a própria negatividade tendo por si, para si e em si identificado um possibilidade de realidade.

Em que tal idéia se identifica com a luta por reconhecimento e com a práxis emancipatória? Ora, como podemos imaginar uma práxis emancipatória comprometida com um partido, com uma ideologia, com uma corrente moral, com um grupo financeiro? Para que seja autentica a práxis emancipatória precisa surgir de um profundo mergulho dentro das razões humanas, descobrir suas motivações pessoais, e apenas assim pode-se imaginar que um sujeito social venha a partir para conquistar realmente sua emancipação.

Temos assim que tal processo é individual e que se potencializa quando ressoa com outros sujeitos sociais que estão na mesma condição e que conseguem também realizar este processo.

Agora cabe perguntar, para chegarmos a esta condição existe algum pressuposto?

2.2 PRESSUPOSTOS PARA UM PENSAMENTO EMANCIPATÓRIO

Chegando a um possível entendimento do que seja o movimento do pensamento emancipatório podemos nos arriscar a verificar quais são os pressupostos para que tal movimento possa efetivamente existir. Segundo Marx e Engels (2006), na página cinqüenta e três de seu texto podemos verificar que para que possa existir uma pessoa, e daí uma possibilidade de práxis emancipatória, primeiro tal pessoa precisa “estar bem alimentada, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais”.

Mészáros destaca também que a educação tem papel fundamental na fomentação de uma práxis emancipatória, para isso precisa estar voltado para o desenvolvimento humano e não apenas para a satisfação das necessidades mercadológicas.

Como todo o processo emancipatório é de ordem teórica e não é utilitarista, é necessário que o sujeito da emancipação esteja livre da carga utilitarista a maior parte do tempo possível, onde poderá dedicar seus pensamentos para as formas de sofrimento e desrespeito à que está submetido. Descobrir quais as causas destes sofrimentos e montar planos para agir a fim de subverter a condição que o faz sofrer.

Percebo que a cultura precisa estar voltada para este ponto, desenvolvida sobre uma prática de criticismo agudo, e que assim respeita, valoriza e desenvolve as possibilidades de existir a práxis emancipatória.

Quando este tempo livre para colocar em movimento a práxis emancipatória não está disponível começamos a experimentar um impedimento prático para que a práxis emancipatória ocorra. Meus pensamentos estão focados em questões práticas de sobrevivência ou nas ações práticas que tenho de tomar para continuar sobrevivendo. Assim o primeiro impedimento, que percebo, para a práxis emancipatória é o excesso de tempo gasto com a manutenção da vida prática. Sendo assim não consigo admirar o que há. O que há simplesmente há, não tenho a menor pretensão de me perguntar pelo “por quê” do que há, pois tenho questões mais urgentes que esta. As questões mais urgentes são de ordem prática e estão relacionadas diretamente com a sobrevivência.

Outro possível impedimento é ter tempo para dedicar ao processo de emancipação, mas por convicções próprias não estar disposto a enxergar novas possibilidades, não quero dedicar meu tempo ao “por quê” há o que há, pois estou seguro no que há da forma que há e não desejo abrir mão de minha comodidade e do conforto que é ter as coisas organizadas desta forma. Podemos chamar esta atitude de posicionamento dogmático ingênuo segundo Bornheim.

Também poderíamos pensar na possibilidade de avançar parcialmente no pensamento crítico e esbarrarmos com o ceticismo extremo e niilista, que nada concede, e que nada pode ser, e que nada adianta ser feito, pois nada muda. E assim teríamos o terceiro impedimento para a práxis emancipatória.

Um quarto fator ainda é a realidade educacional que verificamos em nosso país. O foco principal de nossa educação salvo raras e pequenas exceções é indiscutivelmente mercadológico ou ideologizada para fins determinados. Isso faz com que o esforço do sujeito social seja ainda maior. A formação de uma postura crítica precisa estar fortemente desenvolvida para que consiga dentro desta realidade educacional desenvolver o seu posicionamento negativo e principalmente a capacidade de ressignificação e transcendência da negatividade.

O que poderíamos dizer então da cultura em nosso tempo. Se pensamos na imediatidade, na necessidade de satisfação imediata premente, como podemos pensar em filosofia ou em práxis emancipatória. O desejo comum é rapidamente escapar a dor e não saboreá-la no recôndito do ser em busca de suas razões existenciais. Talvez aí fique um outro momento onde morre a possibilidade da práxis emancipatória.

2.3 POSICIONAMENTO DA RENDA DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS

Neste ponto pretendo verificar dentro da realidade brasileira quais famílias estão em situação de dificuldade para manter uma postura livre do utilitarismo e assim em condições de desenvolver a práxis emancipatória.

Buscando um panorama no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dentro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios publicada em dois mil e sete, facilmente percebemos que mais de cinqüenta e três por cento das famílias brasileiras vivem com até um salário mínimo (ver anexo1).

Aqui fica claro que mais da metade das famílias brasileiras encontram dificuldade para atender aos requisitos apresentados por Marx e Engels (2006) citado no item dois ponto um deste artigo, pois: como pensar a dificuldade destas famílias para suprir as necessidades básicas de alimentação, moradia, vestuário e educação sendo atendidos com quatrocentos e sessenta e cinco reais mensais, fora descontos de impostos.

Não me parece que haja um impedimento fisiológico destas pessoas, creio que em condições adequadas são extremamente capazes de chegar a uma práxis emancipatória de forma muito satisfatória.

Esta seria uma primeira impossibilidade para o desenvolvimento de práxis emancipatória. Imaginemos ainda uma categoria de famílias deste tipo que se dediquem a uma atividade extremamente mecânica, como o trabalho no chão de fábrica de uma linha de produção. Como ficaria a capacidade de identificar outras possibilidades de realidade? Como falar da capacidade de perguntar-se sobre o “por quê” do que há, dada a preocupação com a subsistência, a satisfação das necessidades básicas, a compensação de todo o sofrimento infligido pela a situação em que se encontra? Neste ponto parece-me que falamos da caverna de Platão, e aqui estamos vendo o ponto mais escuro dentro desta realidade.

Como imaginar a possibilidade de extrapolar a visão dogmática e enfrentá-la através de uma experiência negativa? Qual as condições esta família tem efetivamente de extrapolar as suas expectativas, que, sejamos sinceros, parece a de não conseguir realizar a práxis emancipatória?

Aqui apenas um estudo etnográfico poderia responder de forma mais direta estas perguntas. Apenas com o trabalho sociológico poderiam ser determinadas com precisão as reais possibilidades de efetivação da práxis emancipatória, uma vez que a resposta teórica aponta para a impossibilidade da transcendência de sua existência dados os diversos pontos que impossibilitam a geração de pensamento crítico.

O quadro ainda fica piorado, se isto é possível, com a verificação da qualidade do ensino que é ofertado a sociedade brasileira. O ensino basicamente focado na satisfação das necessidades mercadológicas parece ser unanimidade em nosso país. Não identifico qualquer interesse sério na formação humana. Até mesmo a introdução da filosofia e sociologia nos currículos do ensino médio tende a satisfação do mercado que necessita de mão de obra capaz de tomar decisões, inovar e expressarem-se de forma ordenada. A educação é pensada como um negócio, como algo que deve outorgar diplomas aqueles que fingem estudar por aqueles que fingem ensinar.

2.4 ALTERNATIVAS APONTADAS COMO POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÀO DA PRÁXIS EMANCIPATÓRIA

“Para ser outra coisa, para produzir insubordinação, rebeldia, precisa redescobrir

suas relações com o trabalho e com o mundo do trabalho, com o qual compartilha,

entre tantas coisas, a alienação.” (SADER inn MÉSZÁROS, p. 17)

Segundo Mészáros a alternativa seria uma revolução radical na educação que deveria deixar de ser direcionada para a satisfação do mercado e focar no desenvolvimento humano.

Nossa Constituição aponta para a importância de ter satisfeitas as necessidades básicas humanas, como moradia, educação, alimentação e vestuário. Mas tal lei parece ser apenas discursiva, pois se fosse séria teríamos muito menos gente vivendo nas condições apresentadas pelo PNAD (mais de 53% das famílias vivendo com até um salário mínimo). Desta maneira, outra solução, que deve ser trabalhada em conjunto com a anteriormente citada: se fazer cumprir a Constituição que atribui ao Estado a responsabilidade de manter satisfeitas as necessidades básicas de seus cidadãos.

Talvez desta forma conseguíssemos propiciar o ambiente onde a práxis emancipatória pudesse florescer e por sua vez a Luta por Reconhecimento se fizesse de uma forma efetiva. Ainda seria muito importante contar com a ajuda da filosofia para desenvolver o Pensamento Crítico, que ajudasse na construção de uma sociedade com mais justiça social e equidade.

3 CONCLUSÃO

A doutrina materialista que supõe que os homens são produtos das circunstâncias e da

educação e, em razão disso, os homens transformados são produtos de outras

circunstâncias e de uma educação modificada, esquece-se de que são justamente os

homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser

educado. Por isso, essa doutrina chega necessariamente, a dividir a sociedade em

duas partes, uma das quais é posta acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen).

A coincidência da mudança das circunstâncias com a atividade humana ou mudança de si

próprio só pode ser vista e considerada racionamento como práxis revolucionária.

(MARX e ENGELS, 2006, p. 118).

Ante ao que foi exposto, parece-me que a práxis emancipatória, de alguma forma coincide com o Processo de Filosofar que ficou expresso com três fases claras:

1. Admiração Ingênua;

2. Experiência negativa;

3. Significação e superação da Experiência Negativa.

Também percebo que vários autores colocam as situações práticas que podem impedir o desenvolvimento da práxis emancipatória, destacando principalmente Mészáros, Marx e Bornheim.

Para a superação destes problemas creio que a proposta de Mészáros de uma educação para além do capital, focada no desenvolvimento, anseio e necessidades humanas seja muito coerente.

Também creio que precisemos satisfazer as necessidades básicas da nossa população com um emprego menor de horas trabalhadas por dia, para que além da educação também possam dispor de tempo para os processos críticos, que como percebemos são fundamentais para a práxis emancipatória e por sua vez para a luta por reconhecimento.

Soma-se a estas necessidades a disponibilidade de tempo para pensar de forma crítica, perceber quais são os sofrimentos aos quais o próprio sujeito social está exposto, onde o sofrimento está inscrito e quais as ações necessárias para que consigam transformar a realidade na qual o sujeito social está inserido.

Para atingir esta meta, parece necessário que o Estado cumpra o papel de provedor dos artigos de necessidades básicas que estão previstos em nossa Constituição e que até o presente momento apenas figuram de forma adornativa. Soma-se a isto uma profunda reforma cultural, que se inicia em uma radicalização do ensino que deverá estar voltado para além do capital, que assim procure formar seres humanos e não mão de obra para um mercado.

Creio que desta forma poderíamos proporcionar as condições mínimas para que o sujeito social possa decidir se deseja ou não lançar-se a práxis emancipatória e a luta por reconhecimento. Na atual realidade brasileira, no universo de 53% das famílias que vivem mensalmente com um salário mínimo, salvo melhor verificação de um estudo etnológico, afirmo que fica impossibilitada a práxis emancipatória e a luta por reconhecimento.

Muito obrigado!

REFERÊNCIA

BORNHEIM, Gerd Aberto. Introdução ao Filosofar, O pensamento filosófico em bases existenciais. 11 ed. São Paulo: Globo, 2003.

HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento, A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Editora 34, 2003.

MARX, Karl e ENGELS, Freidrich. A Ideologia Alemã. São Paulo, Martin Claret, 2006

____________________________Manifesto do Partido Comunista. 4 ed. Petrópolis, Vozes, 1993.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. São Paulo, Rideel, 2005.

MÉSZÁROS, István. A Educação para Além do Capital. São Paulo, Boitempo, 2005.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2004

SALONIA, Michelle. Suffering from Exclusion. Acessado em 16/3/2009. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/4325/3267

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1 ANEXO I

Porto Alegre, 1º de Julho de 2009