Nietzsche - Recortes

Artur Júnior dos Santos Lopes

Rejane C. Farias

INTRODUÇÃO

Ler e compreender Nietzsche está longe de ser uma tarefa simples. Sintetizar algo tão vasto é obra para uma vida. Tendo em vista este pensamento, propomos algo diferente: expormo-nos ao texto de Nietzsche e daí levantarmos alguns entendimentos possíveis, importante salientar, que não os únicos entendimentos, apenas uma leitura dos mesmos. Propusemos então convidá-los a esta exposição ao texto e a coleta de sensações produzidas em nosso grupo. É fundamental para que cumpramos nosso intento que todos participem, buscando o ponto em que se sentem tocados. Não é estranho perceber que durante a exposição alguns sintam o enjôo causado por um pensamento que não pretende a beleza ou a perfeição, e talvez em função disso seja belo, pois não é sintético. É a expressão do que há de mais humano em todos nós, sem maquiagens, sem subterfúgios, sem mascaramentos.

Desta forma, Para cumprirmos com o nosso intento, selecionamos algumas passagens da obra Assim Falou Zaratustra de Friedrich Wilhelm Nietzsche e procuramos passar nossas impressões, queremos que todos estejam a vontade e reiteramos que todas as participações são bem-vindas.

1 PRIMEIRA PARTE:

Já no preâmbulo Zaratustra nos mostra a que veio com uma exposição de que a existência do humanizado somente se justifica apartir do olho do(a) observador(a), o que ele indica com o transbordamento da taça . E que quando se está enfadado de si mesmo necessitamos da troca para nos justificarmos. Este pensamento também aparece em cartas que Nietzsche escreve a outros intelectuais do seu tempo e que foram publicadas no final do livro Para Além do Bem e do Mal, em especial na de 12 de Outubro de 1886, escrita em Gênova para Overbeck.

É só nesse sentido, meu velho amigo Overbeck, que sofro da minha “solidão”. Em parte alguma me faltam pessoas, mas sim amigos com os quais eu possa partilhar as minhas inquietações!

1.1 O Ocaso de Zaratustra - Preâmbulo

Também percebe-se algo de Platão, onde fica implícito o retorno a caverna para resgatar os que estão nas trevas e ofertar-lhes a luz. Segue então o Preâmbulo de Zaratustra:

Aos trinta anos Zaratustra afastou-se

da sua pátria e do lago da sua pátria, e

dirigiu-se à montanha. Durante dez

anos gozou por lá do seu espírito e da

sua solidão sem se cansar. Variaram,

no entanto, os seus sentimentos, e uma

manhã, erguendo-se com a aurora,

pôs-se em frente do sol e falou-lhe da

seguinte maneira:

"Grande astro! Que seria da tua

felicidade se te faltassem aqueles a

quem iluminas? Faz dez anos que te

apresentas à minha caverna, e, sem

mim, sem a minha águia e a minha

serpente, haver-te-ias cansado da tua

luz e deste caminho.

Nós, porém, te aguardávamos todas as

manhãs, tomávamo-te o supérfluo e

bendizíamo-te.

Pois bem: já estou tão enfastiado da

minha sabedoria, como a abelha

quando acumula demasiado mel.

Necessito mãos que se estendam para

mim. Quisera dar e repartir até que os

sábios tornassem a gozar da sua

loucura e os pobres, da sua riqueza.

Por essa razão devo descer às

profundidades, como tu pela noite, astro

exuberante de riqueza quando

transpões o mar para levar a tua luz ao

mundo inferior.

Eu devo descer, como tu, segundo

dizem os homens a quem me quero

dirigir.

Abençoa-me, pois, olho afável, que

podes ver sem inveja até uma felicidade

demasiado grande!

Abençoa a taça que quer transbordar,

para que dela jorrem as douradas

águas, levando a todos os lábios o

reflexo da tua alegria!

Olha! Esta taça quer novamente

esvaziar-se, e Zaratustra quer tornar a

ser homem".

Assim principiou o ocaso de Zaratustra.

No III movimento da primeira parte, Nietzsche apresenta o esboço da sua visão de evolução para o ser humano. Ele se utiliza do termo super-homem, o que está além do homem para satisfazer a sua idéia. Estão prontos para suportar esta esboço inicial?

Chegando à cidade mais próxima,

situada nos bosques, Zaratustra

encontrou uma grande multidão na

praça pública, porque estava anunciado

o espetáculo de um bailarino de corda.

E Zaratustra falou assim ao povo: "Eu

vos anuncio o Super-homem".

"O homem é superável. Que fizestes

para o superar?

Até agora todos os seres têm

apresentado alguma coisa superior a si

mesmos; e vós, quereis o refluxo desse

grande fluxo, preferis tornar ao animal,

em vez de superar o homem?

Que é o macaco para o homem? Uma

zombaria ou dolorosa vergonha.

Pois é o mesmo que deve ser o homem

para Super-homem: uma irrisão ou uma

dolorosa vergonha.

Percorrestes o caminho que medeia do

verme ao homem, e ainda em vós resta

muito do verme. Noutro tempo fostes

macaco, e hoje o homem é ainda mais

macaco do que todos os macacos.

Mesmo o mais sábio de todos vós não

passa de uma mistura híbrida de planta

e de fantasma. Acaso vos disse eu que

vos torneis planta ou fantasma?

Eu vos apresento o Super-homem! O

Super-homem é o sentido da terra.

Diga a vossa vontade: seja o

Super-homem, o sentido da terra.

Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer

fiéis à terra e a não acreditar em que

vos fala de esperanças supraterrestres.

São envenenadores, quer o saibam ou

não.

Não dão o menor valor à vida,

moribundos que estão, por sua vez

envenenados, seres de que a terra se

encontra fatigada; vão-se por uma vez!

Noutros tempos, blasfemar contra Deus

era a maior das blasfêmias; mas Deus

morreu, e com ele morreram tais

blasfêmias. Agora, o mais espantoso é

blasfemar da terra, e ter em maior conta

as entranhas do impenetrável do que da

terra.

Noutros tempos a alma olhava o corpo

com desprezo, e então nada havia

superior a esse desdém;

queria a alma um corpo fraco, horrível,

consumido de fome! Julgava deste

modo libertar-se dele e da terra.

Ó! Essa mesma alma era uma alma

fraca, horrível e consumida, e para ela

era um deleite a crueldade!

Irmãos meus, dizei-me: que diz o vosso

corpo da vossa alma? Não é a vossa

alma, pobreza, imundície e

conformidade lastimosa?

O homem é um rio turvo. E preciso ser

um mar para, sem se toldar, receber um

rio turvo.

Pois bem; eu vos anuncio o

Super-homem; é ele esse mar; nele se

pode abismar o vosso grande

menosprezo.

Qual é a maior coisa que vos pode

acontecer? Que chegue a hora do

grande menosprezo, a hora em que vos

enfastie a vossa própria felicidade, de

igual forma que a vossa razão e a vossa

virtude.

A hora em que digais: "Que importa a

minha felicidade! É pobreza, imundície e

conformidade lastimosa. A minha

felicidade, porém, deveria justificar a

própria existência!" A hora em que

digais: "Que importa minha razão! Anda

atrás do saber como o leão atrás do

alimento. A minha razão é pobreza,

imundície e conformidade lastimosa!"

A hora em que digais: "Que importa a

minha virtude? Ainda me não enervou.

Como estou farto do meu bem e do meu

mal. Tudo isso é pobreza, imundície e

conformidade lastimosa!"

A hora em que digais: "Que importa a

minha justiça?! Não vejo que eu seja

fogo e carvão! O justo, porém, é fogo e

carvão!"

A hora em que digais: "Que importa a

minha piedade? Não é a piedade a cruz

onde se crava aquele que ama os

homens? Pois a minha piedade é uma

crucificação". Já falaste assim? Já

gritaste assim? Ah! Não vos ter eu

ouvido a falar assim!

Não são os vossos pecados, é a vossa

parcimônia que clama ao céu! A vossa

mesquinhez até no pecado, isso é que

clama ao céu!

Onde está, pois, o raio que vos lamba

com a sua língua? Onde está o delírio

que é mister inocular-vos? Vede; eu

anuncio-vos o Super-homem: "É ele

esse raio! É ele esse delírio!"

Assim que Zaratustra disse isto, um da

multidão exclamou: "Já ouvimos falar

muito do que dança na corda; queremos

conhecê-lo agora". E toda a gente se

riu de Zaratustra. Mas o dançarino da

corda, julgando que tais palavras eram

com ele, pôs-se a trabalhar.

No IV movimento as águas se aprofundam. Nietzsche apresenta seu super-homem com uma gana assustadora, com um nexo que não nos pareceu prudente procurar dar inferência, dada a grande complexidade dos paradoxos que nos oferece. Preferimos deixar a critério de cada um os sentimentos sobre os escritos. Ainda assim percebemos a proximidade com a “senda do fio da navalha” que aparece nas culturas orientais, citada por iogues como Hamasharaka e também nos fundamentos budistas colocados por Shidarta Gautama durante a apresentação do caminho octoplo.

Zaratustra, no entanto, olhava a

multidão, e assombrava-se. Depois

falava assim:

"O homem é corda estendida entre o

animal e o Super-homem: uma corda

sobre um abismo; perigosa travessia,

perigoso caminhar; perigoso olhar para

trás, perigoso tremer e parar.

O que é de grande valor no homem é

ele ser uma ponte e não um fim; o que

se pode amar no homem é ele ser uma

passagem e um acabamento.

Eu só amo aqueles que sabem viver

como que se extinguindo, porque são

esses os que atravessam de um para

outro lado.

Amo aqueles de grande desprezo,

porque são os grandes adoradores, as

setas do desejo ansiosas pela outra

margem.

Amo os que não procuram por detrás

das estrelas uma razão para sucumbir e

oferecer-se em sacrifício, mas se

sacrificam pela terra, para que a terra

pertença um dia ao Super-homem.

Amo o que vive para conhecer, e que

quer conhecer, para que um dia viva o

Super-homem, porque assim quer ele

sucumbir.

Amo o que trabalha e inventa, a fim de

exigir uma morada ao Super-homem e

preparar para ele a terra, os animais e

as plantas, porque assim quer o seu fim.

Amo o que ama a sua virtude, porque a

virtude é vontade de extinção e uma

seta do desejo.

Amo o que não reserva para si uma

gota do seu espírito, mas que quer ser

inteiramente o espírito da sua virtude,

porque assim atravessa a ponte como

espírito.

Amo o que faz da sua virtude a sua

tendência e o seu destino, pois assim,

por sua virtude, quererá viver ainda e

não viver mais.

Amo o que não quer ter demasiadas

virtudes. Uma virtude é mais virtude do

que duas, porque é mais um nó a que

se ata o destino.

Amo o que prodigaliza a sua alma, o

que não quer receber agradecimentos

nem restitui, porque dá sempre e não

quer se poupar.

Amo o que se envergonha de ver cair o

dado a seu favor e, por essa razão, se

pergunta: "Serei um jogador

fraudulento?", porque quer ir ao fundo.

Amo o que solta palavras de ouro

perante as suas obras e cumpre sempre

com usura o que promete, porque quer

perecer.

Amo o que justifica os vindouros e

redime os passados, porque quer que o

combatam os presentes. Amo aquele

cuja alma é profunda, mesmo na dor, e

pois a cólera do seu Deus o confundirá.

Amo aquele cuja alma é profunda,

mesmo na ferida, e ao que pode

aniquilar um leve acidente, porque

assim de bom grado passará a ponte.

Amo aquele cuja alma transborda, a

ponto de se esquecer de si mesmo e

quanto esteja nele, porque assim todas

as coisas se farão para sua ruína.

Amo o que tem o espírito e o coração

livres, porque assim a sua cabeça

apenas serve de entranhas ao seu

coração, mas o seu coração o leva a

sucumbir.

Amo todos os que são como gotas

pesadas que caem uma a uma da

nuvem escura suspensa sobre os

homens, anunciam o relâmpago

próximo e desaparecem como

anunciadores.

Vede: eu sou um anúncio do raio e uma

pesada gota procedente da nuvem; mas

este raio chama-se o Super-homem".

Na V parte Zaratustra procura o ajuste de sua fala, não como vinha fazendo, pois não era o que a multidão compreendia. Tentou falar-lhes do último homem mas também aqui a forma de sua fala não obteve penetração. Então puseram-se todos a observar os malabaristas. O show é trágico, e um dos malabaristas morre por conta do outro que se fantasiava de palhaço pressionou o outro e o fez cair. Empurrou-o para a frente. Do chão Zaratustra o recolheu. Prometeu-lhe um enterro. Desta forma fê-lo seu companheiro. Fez-se noite e Zaratustra que estava a velar o defunto, resolveu carregar o companheiro. O bandido que projetou para o chão o colega interpelou o protagonista da história dizendo-lhe que tinha sorte de rebaixar ao recolher e enterrar o cadáver, pois que assim não lhe dariam crédito as palavras. Percebe-se grande semelhança com história de Sócrates que representava, assim como Zaratustra, grande perigo a sociedade, uma vez que incitava o pensamento crítico.

Zaratustra decide-se a deixar o morto e buscar companheiros vivos, aos quais não pudesse carregar assim como o defunto. Que lhe propusessem oposição e que tivessem sua própria jornada. Assim como Capelo, Zaratustra vai desgarrar alguns do rebanho para tomar-lhes por discípulos. Já estamos no IX movimento.

Zaratustra dormiu muito tempo e por ele

passou não só a aurora mas toda a

manhã. Finalmente abriu os olhos e

olhou admirado no meio do bosque e do

silêncio; admirado olhou para dentro de

si mesmo. Ergueu-se precipitado, como

navegante que de repente avista terra, e

gritou de alegria porque vira uma

verdade nova. E falou deste modo ao

seu coração:

"Um raio de luz me atravessa a alma:

preciso de companheiros. mas vivos, e

não de companheiros mortos e

cadáveres, que levo para onde quero.

preciso de companheiros, mas vivos

que me sigam - porque desejem

seguir-se a si mesmos – para onde

quer que eu vá.

Um raio de luz me atravessa a alma:

não é à multidão que Zaratustra deve

falar, mas a companheiros! Zaratustra

não deve ser pastor e cão de um

rebanho!

Para desgarrar muitos do rebanho, foi

para isso que vim. O povo e o rebanho

irritam-se comigo. Zaratustra quer ser

chamado de ladrão pelos pastores.

Eu os denomino pastores, mas eles a si

mesmos se consideram os fiéis da

verdadeira crença! Vede os bons e os

justos! A quem odeiam mais? A quem

lhes despedaça as tábuas de valores,

ao infrator, ao destruidor. É este, porém,

o criador.

O criador procura companheiros, não

procura cadáveres, rebanhos, nem

crentes; procura colaboradores que

inscrevam valores novos ou tábuas

novas.

O criador procura companheiros para

acompanhá-lo; porque tudo está

maduro para a ceifa. Faltam-lhe,

porém, as cem foices, e por isso arranca

espigas, contra sua vontade.

Companheiros que saibam afiar as suas

foices, eis o que procura o criador.

Chamar-lhes-ão destruidores e

desprezadores do bem e do mal, mas

eles hão de ceifar e descansar.

Colaboradores que ceifem e descansem

com ele, eis o que busca Zaratustra.

Que se importa ele com rebanhos,

pastores e cadáveres?

E tu, primeiro companheiro meu,

descansa em paz! Enterrei-te bem, na

tua árvore oca, deixo-te bem defendido

dos lobos.

Separo-me, porém, de ti; já passou o

tempo. Entre duas auroras me iluminou

uma nova verdade.

Não devo ser pastor nem coveiro.

Nunca mais tornarei a falar ao povo;

pela última vez falei com um morto.

Quero unir-me aos criadores, aos que

colhem e se divertem; mostrar-lhes-ei o

arco-íris e todas as escadas que levam

ao Super-homem.

Entoarei o meu cântico aos solitários e

aos que se encontram juntos na solidão;

e a quem quer que tenha ouvidos para

as coisas inauditas confranger-lhe-ei o

coração com a minha ventura.

Caminho para o meu fim; sigo o meu

caminho; saltarei por cima dos

negligentes e dos retardados. Desta

maneira será a minha marcha o seu

fim!"

X

Assim falou Zaratustra ao seu coração

quando o sol ia em meio do seu curso;

depois dirigiu para as alturas um olhar

interrogador porque ouvia no alto o grito

penetrante de uma ave. E viu uma águia

que pairava nos ares traçando largos

rodeios e sustentando uma serpente

que não parecia uma presa, mas um

aliado, porque se lhe enroscava ao

pescoço.

"São os meus animais! - disse

Zaratustra, e regozijou-se intimamente.

O animal mais arrogante que o sol cobre

e o animal mais astuto que o sol cobre

saíram em exploração. Queriam

descobrir se Zaratustra ainda vivia.

Ainda viverei, deveras?

Encontrei mais perigos entre os homens

do que entre os animais; perigosas

sendas segue Zaratustra. Guiem-me os

meus animais".

Depois de dizer isto, Zaratustra

recordou-se das palavras do santo do

bosque, suspirou e falou assim ao seu

coração:

"Devo ser mais judicioso! Devo ser tão

profundamente astuto como a minha

serpente.

Peço, porém, o impossível; rogo,

portanto, a minha altivez que me

acompanhe sempre a prudência! E se

um dia a prudência me abandonar - ai!

agrada-lhe tanto fugir! - possa sequer a

minha altivez voar com a minha

loucura!" Assim começou o ocaso de

Zaratustra.

1.2 Das Três Transformações

Desculpem colocar ainda o X movimento, mas não pude deter-me. Minha compulsão pelo mel em favo, faz-me querer que todos também assim o aceitem. Mas reconheço que alguns não querem o trabalho de extrair o mel dos favos. A cera os incomoda. A mim, a mim não. A cera me lembra que o prazer não está separado do trabalho. Ainda assim quem ousa responder as perguntas que seguem? Quais as transformações devem se processar no espirito? E por quê? Aqui aparece para Nietzsche a submissão, o apego, e as formas que se deve vencê-los.

Das Três Transformações

"Três transformações do espírito vos

menciono: como o espírito se muda em

camelo, e o camelo em leão, e o leão,

finalmente, em criança.

Há muitas coisas pesadas para o

espírito, para o espírito forte e sólido,

respeitável. A força deste espírito está

clamando por coisas pesadas, e das

mais pesadas.

Há o quer que seja pesado? - pergunta

o espírito sólido. E ajoelha-se igual

camelo e quer que o carreguem bem.

Que há mais pesado, heróis - pergunta

o espírito sólido - para eu o ditar sobre

mim, para que a minha força se recreie?

Não será rebaixarmo-nos para o nosso

orgulho padecer?

Deixar brilhar a nossa loucura para

zombarmos da nossa sabedoria?

Ou será separarmo-nos da nossa

causa quando ela festeja a sua vitória?

Escalar altos montes para tentar o que

nos tenta?

Ou será sustentarmo-nos com bolotas e

erva do conhecimento e sofrer fome na

alma por causa da verdade? Ou será

estar enfermo e despedir a

consoladores e travar amizade com

surdos que nunca ouvem o que

queremos?

Ou será nos afundar em água suja

quando é a água da verdade, e não

afastarmos de nós as frias rãs e os

quentes sapos?

Ou será amar os que nos desprezam e

estender a mão ao fantasma quando

nos quer assustar?

O espírito sólido sobrecarrega-se de

todas estas coisas pesadíssimas; e à

semelhança do camelo que corre

carregado pelo deserto, assim ele corre

pelo seu deserto. No deserto mais

solitário, porém, se efetua a segunda

transformação: o espírito toma-se leão;

quer conquistar a liberdade e ser senhor

no seu próprio deserto.

Procura então o seu último senhor, quer

ser seu inimigo e de seus dias; quer

lutar pela vitória com o grande dragão.

Qual é o grande dragão a que o espirito

já não quer chamar Deus, nem senhor?

"Tu deves", assim se chama o grande

dragão; mas o espírito do leão diz: "Eu

quero".

O "tu deves" está postado no seu

caminho, como animal escamoso de

áureo fulgor; e em cada uma das suas

escamas brilha em douradas letras: "Tu

deves!"

Valores milenários cintilam nessas

escamas, e o mais poderoso de todos

os dragões fala assim:

"Em mim brilha o valor de todas as

coisas".

"Todos os valores foram já criados, e eu

sou todos os valores criados. Para o

futuro não deve existir o "eu quero!"

Assim falou o dragão.

Meus irmãos, que falta faz o leão no

espírito? Não será suficiente a besta de

carga que abdica e venera?

Criar valores novos é coisa que o leão

ainda não pode; mas criar uma

liberdade para a nova criação, isso

pode-o o poder do leão. Para criar a

liberdade e um santo NÃO, mesmo

perante o dever; para isso, meus

irmãos, é preciso o leão.

Conquistar o direito de criar novos

valores é a mais terrível apropriação aos

olhos de um espírito sólido e respeitoso.

Para ele isto é uma verdadeira rapina e

próprio de um animal rapace.

Como o mais santo, amou em seu

tempo o "tu deves" e agora tem de ver a

ilusão e arbitrariedade até no mais

santo, a fim de conquistar a liberdade à

custa do seu amor. É preciso um leão

para esse feito...

Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a

criança fazer que não haja podido fazer

o leão? Para que será preciso que o

altivo leão se mude em criança?

A criança é a inocência, e o

esquecimento, um novo começar, um

brinquedo, uma roda que gira sobre si,

um movimento, uma santa afirmação.

Sim; para o jogo da criação, meus

irmãos, é necessário uma santa

afirmação: o espírito quer agora a sua

vontade, o que perdeu o mundo quer

alcançar o seu mundo. Três

transformações do espírito vos

mencionei: como o espírito se

transformava em camelo, e o camelo

em leão, e o leão, finalmente, em

criança".

Assim falou Zaratustra. E nesse tempo

residia na cidade que se chama "Vaca

Malhada".

1.3 Dos que Desprezam o Corpo

Neste ponto podemos perceber a relação que Zaratustra tem com o seu corpo. É importante lembrar que Nietzsche está escrevendo estas palavras em 1886 isso demonstra uma visão impregnada de iluminismo, mas depois ele faz uma revisão de todo o tecnicismo em Genealogia a Moral

Dos Que Desprezam o Corpo

Aos que desprezam o corpo quero dar o

meu parecer. O que devem fazer não é

mudar de preceito, mas simplesmente

despedirem-se do seu próprio corpo e,

por conseguinte, ficarem mudos.

"Eu sou corpo e alma" - assim fala a

criança. - E por que se não há de falar

como as crianças?

Entretanto o que está desperto e atento

diz: - "Tudo é corpo e nada mais; a

alma é apenas nome de qualquer coisa

do corpo".

O corpo é uma razão em ponto grande,

uma multiplicidade com um só sentido,

uma guerra e uma paz, um rebanho e

um pastor.

Instrumento do teu corpo é também a

tua razão pequena, a que chamas

espírito: um instrumentozinho e um

pequeno brinquedo da tua razão

grande.

Tu dizes "Eu" e orgulhas-te dessa

palavra. No entanto, maior - coisa que

tu não queres crer - é o teu corpo e a

tua razão grande. Ele não diz Eu, mas:

procede como Eu.

O que os sentidos apreciam, o que o

espírito conhece, nunca em si tem seu

fim; mas os sentidos e o espírito

quereriam convencer-te de que são fim

de tudo; tão soberbos são.

Os sentidos e o espírito são

instrumentos e joguetes; por detrás

deles se encontra o nosso próprio ser.

Ele examina com os olhos dos sentidos

e escuta com os olhos do espírito.

Sempre escuta e esquadrinha o próprio

ser: combina, submete, conquista e

destrói. Reina, e é também soberano do

Eu.

Por detrás dos teus pensamentos e

sentimentos, meu irmão, há um senhor

mais poderoso, um guia desconhecido.

Chama-se "eu sou". Havia no teu corpo;

é o teu corpo. Há mais razão no teu

corpo do que na tua melhor sabedoria.

E quem sabe para que necessitará o teu

corpo precisamente da tua melhor

sabedoria?

O próprio ser se ri do teu Eu e dos seus

saltos arrogantes. Que significam para

mim esses saltos e vôos do

pensamento? - diz. - Um rodeio para o

meu fim. Eu sou o guia do Eu e o

inspirador de suas idéias.

O nosso próprio ser diz ao Eu:

"Experimenta dores! E padece e medita

em não padecer mais; e para isso deve

pensar. O nosso próprio ser diz ao Eu:

"Experimenta alegrias!" Regozija-se

então e pensa em continuar a

regozijar-se freqüentemente; e isso

deve pensar.

Quero dizer uma coisa aos que

desprezam o corpo: desprezam aquilo a

que devem a sua estima.

Quem criou a estima e o menosprezo e

o valor e a vontade?

O próprio ser criador criou a sua estima

e o seu menosprezo, criou a sua alegria

e a sua dor. O corpo criador criou a si

mesmo o espírito como emanação da

sua vontade.

Desprezadores do corpo: até na vossa

loucura e no vosso desdém sereis o

vosso próprio ser. Eu vos digo: o vosso

próprio ser quer morrer e se afasta da

vida.

Não pode fazer o que mais desejaria:

criar superando-se a si mesmo.

É isto o que ele mais deseja: é esta a

sua paixão toda.

É, porém, tarde demais para isso: por

isso até o vosso próprio ser quer

desaparecer, desprezadores do corpo.

O vosso próprio ser quer desaparecer:

por isso desprezais o corpo! Porque não

podeis criar já, superando-vos a vós

mesmos. Por isso vos revoltais contra a

vida e a terra. No vosso olhar

desdenhoso transparece uma inveja

inconsciente.

Eu não sigo o vosso caminho,

desprezadores do corpo! Vós, para mim,

não sois pontes que se encaminhem

para o Super-Homem!"

Assim falou Zaratustra

1.4 Do Pálido Delinqüente

Quem é mau? Como podemos julgar alguém? Quem nos outorga o poder do julgamento? Como apontar o erro de outrem? Eis estas questões na boca de Zaratustra:

Do Pálido Delinqüente

"Vós, juizes e sacrificadores, não

quereis matar enquanto a besta não

haja inclinado a cabeça? Vede: o pálido

delinqüente inclinou a cabeça: em seus

olhos fala o supremo desprezo.

"O meu Eu deve ser superado: o meu

Eu é para mim o grande desprezo do

homem". Assim falam os olhos dele. O

seu momento maior foi aquele em que a

si mesmo se julgou. Não deixeis o

sublime tornar a cair na sua baixeza!

Para aquele que tanto sofre por si, só há

salvação na morte rápida.

O vosso homicídio, ó juizes, deve ser

compaixão e não vingança. E, ao matar,

tratai de justificar a própria vida.

Não vos basta reconciliar-vos com

aquele que matais. Seja a vossa tristeza

amor ao Super-homem; assim justificais

a vossa supervivência!

Dizei "inimigo", "malvado" não; dizei

"enfermo" e não "infame"; dizei

"insensato" e não "pecador".

E tu, vermelho juiz, se dissesses em voz

alta o que fizeste já em pensamento,

toda gente gritaria: Abaixo essa

imundície e esse verme venenoso!...

Uma coisa é o pensamento, outra a

ação, outra a imagem da ação.

A roda da causalidade não gira entre

elas.

Uma imagem fez empalidecer esse

homem pálido. Ele estava à altura do

seu ato quando o realizou, mas não

suportou a sua imagem depois de o ter

consumado.

Sempre se viu só, como o autor de um

ato. Eu considero isso loucura; a

exceção converteu-se para ele em

regra.

O golpe que deu fascina-lhe a pobre

razão: a isso chamo eu a loucura depois

do ato.

Ouvi, juizes! Ainda há outra loucura: a

loucura antes do ato. Ah! não

penetrastes profundamente nessa alma.

O juiz vermelho fala assim: "Por que

este criminoso matou? Queria roubar".

Mas eu vos digo: a sua alma queria

sangue e não o roubo; tinha sede do

gozo da faca!

A sua pobre razão, contudo, não

compreendia essa loucura e decidiu-o.

"Que importa o sangue? - disse ela. -

Nem ao menos desejas roubar ao

mesmo tempo? Não te desejas vingar?"

E atendeu a sua pobre razão, cuja

linguagem pesava sobre ele como

chumbo; então roubou ao assassinar.

Não se queria envergonhar da sua

loucura. E agora pesa sobre ele o

chumbo do seu crime; mas a sua pobre

razão está tão paralisada, tão torpe!...

Se ao menos pudesse sacudir a cabeça,

a sua carga cairia, mas quem sacudirá

esta cabeça?

Quem é este homem? Um conjunto de

enfermidades que, pelo espírito, abrem

caminho para fora do mundo, onde

querem apanhar a sua presa.

Que é este homem? Um magote de

serpentes ferozes que se não podem

entender; por isso cada um vai por seu

lado procurar a presa pelo mundo.

Vede este pobre corpo! O que ele sofreu

e o que desejou, a alma o interpretou a

seu favor; interpretou-o como gozo e

desejo sanguinário do prazer da faca.

O que enferma agora vê-se dominado

pelo mal, que é mal agora; quer fazer

sofrer com o que o faz sofrer; mas

houve outros tempos e outros males e

bens.

Dantes era um mal a dúvida e a vontade

própria. Então o enfermo torna-se

herege e bruxa; como herege e bruxa

padecia e fazia padecer.

Mas isto não quer entrar nos vossos

ouvidos; prejudica, dizeis, os vossos

bons; mas que me importam a mim os

vossos bons?

Nos vossos bons há muitas coisas que

me repugnam, e de certo não é o seu

mal.

Quereria que tivessem uma loucura que

os levasse a sucumbir, como esse

pálido criminoso.

Quereria que a sua loucura se

chamasse verdade, ou fidelidade, ou

justiça; mas têm virtude para viver em

mísera conformidade.

Eu sou um anteparo na margem do rio;

aquele que puder prender-me, que o

faça. Saiba-se, porém, que não sou

vossa muleta". Assim falou Zaratustra.

1.5 Ler e Escrever

Aqui está uma, entre tantas, frases eternizadas por Nietzsche: “Eu só poderia crer em um Deus que soubesse dançar!”

Ler e Escrever

"De todo o escrito só me agrada aquilo

que uma pessoa escreveu com o seu

sangue. Escreve com sangue e

aprenderás que o sangue é espírito.

É difícil compreender sangue alheio: eu

detesto todos os ociosos que lêem. O

que conhece o leitor já nada faz pelo

leitor. Um século de leitores, e o próprio

espírito terá mau cheiro.

Ter toda a gente o direito de aprender a

ler é coisa que estropia, não só a letra

mas o pensamento.

Noutro tempo o espírito era Deus;

depois fez-se homem; agora fez-se

populaça.

O que escreve em máximas e com

sangue não quer ser lido, mas

decorado. Nas montanhas, o caminho

mais curto é o que medeia de cimo a

cimo; mas para isso é preciso ter pernas

altas. Os aforismos devem ser

cumeeiras, e aqueles a quem se fala

devem ser homens altos e robustos.

O ar leve e puro, o próximo perigo e o

espírito cheio de uma alegre malícia,

tudo isto se harmoniza bem. Eu quero

ver duendes em torno de mim porque

sou valoroso. O valor que afugenta os

fantasmas cria os seus próprios

duendes: o valor quer rir.

Eu já não sinto em uníssono convosco;

essa nuvem que eu vejo abaixo de mim,

esse negrume e carregamento de que

me rio, é exatamente a vossa nuvem

tempestuosa.

Vós olhais para o alto quando aspirais a

vos elevar. Eu, como estou alto, olho

para baixo.

Qual de vós pode estar alto e rir ao

mesmo tempo?

O que escala elevados montes ri-se de

todas as tragédias da cena e da vida.

Valorosos, despreocupados,

zombeteiros, violentos, eis como nos

quer a sabedoria. É mulher e só

lutadores podem amar.

Vós dizeis-me: "A vida é uma carga

pesada". Mas para que é esse vosso

orgulho pela manhã e essa vossa

submissão à tarde?

A vida é uma carga pesada: mas não

vos mostreis tão aflitos. Todos somos

jumentos carregados.

Que parecença temos com o cálice de

rosa que treme porque o oprime uma

gota de orvalho?

É verdade: amamos a vida não porque

estejamos costumados à vida, mas ao

amor.

Há sempre o seu quê de loucura no

amor; mas também há sempre o seu

quê de razão na loucura. E eu, que

estou bem com a vida, creio que para

saber de felicidade não há como as

borboletas e as bolhas de sabão, e o

que se lhes assemelhe entre os

homens.

Ver revolutear essas almas aladas e

loucas, encantadoras e buliçosas, é o

que arranca a Zaratustra lágrimas e

canções.

Eu só poderia crer num Deus que

soubesse dançar.

E quando vi o meu demônio,

pareceu-me sério, grave, profundo e

solene: era o espírito do pesadelo. Por

ele caem todas as coisas.

Não é com raiva, mas com riso que se

mata. Adiante! Matemos o espírito do

pesadelo!

Eu aprendi a andar; por conseguinte

corro. Eu aprendi a voar portanto não

quero que me empurrem para mudar de

lugar.

Agora sou leve, agora vôo: agora vejo

por baixo de mim mesmo, agora salta

em mim um Deus".

Assim falou Zaratustra.

1.6 Da Árvore da Montanha

Neste momento Zaratustra mostra as asperezas que estão por todo o caminho da senda. Os que crescem encontram problemas pois seu crescimento é dicotômico e suas raízes aprofundam-se para baixo, para o “mal”.

Da Árvore da Montanha

Os olhos de Zaratustra tinham visto um

mancebo que evitava a sua presença.

E, uma tarde, ao atravessar sozinho as

montanhas que rodeiam a cidade

denominada Vaca Malhada, encontrou

esse mancebo sentado ao pé de uma

árvore, dirigindo ao vale um olhar

fatigado. Zaratustra agarrou a arvore a

que o mancebo se encostava e disse:

"Se eu quisesse sacudir esta árvore

com as minhas mãos não poderia; mas

o vento que não vemos açoita-a e

dobra-a como lhe apraz. Também a nós

mãos invisíveis nos açoitam e dobram

rudemente".

A tais palavras, o mancebo ergueu-se

assustado, dizendo: "Ouço Zaratustra, e

positivamente estava a pensar nele".

"Por que te assustas? O que sucede à

arvore sucede ao homem.

Quanto mais se quer erguer para o alto

e para a luz, mais vigorosamente

enterra as suas raízes ara baixo, para o

tenebroso e profundo para o mal".

"Sim; para o mal! - exclamou o

mancebo - Como é possível teres

descoberto a minha alma?" Zaratustra

sorriu e disse: "Há almas que nunca se

descobrirão, a não ser que se principie

por inventá-las".

"Sim; para o mal! - exclamou outra vez

o mancebo.

Dizias a verdade, Zaratustra. Já não

tenho confiança em mim desde que

quero subir às alturas, e já nada tem

confiança em mim. A que se deve isto?

Eu me transformo muito depressa: o

meu hoje contradiz o meu ontem. Com

freqüência salto degraus quando subo,

coisa que os degraus me não perdoam.

Quando chego em cima, sempre me

encontro só. Ninguém me fala; o frio da

solidão faz-me tiritar. Que é que quero,

então, nas alturas? O meu desprezo e o

meu desejo crescem a par; quanto mais

me elevo mais desprezo o que se

eleva? Como me envergonho da minha

ascensão e das minhas quedas! Como

me rio de tanto anelar! Como odeio o

que voa! Como me sinto cansado nas

alturas!"

O mancebo calou-se Zaratustra olhou

atento a arvore a cujo pé se

encontravam e falou assim

"Esta árvore está solitária na montanha.

Cresce muito sobranceira aos homens e

aos animais!

E se quisesse falar ninguém haveria que

a pudesse compreender: tanto cresceu.

Agora espera, e continua esperando.

Que esperará, então? Habita perto

demais das nuvens: acaso esperará o

primeiro raio?"

Quando Zaratustra acabava de dizer

isto, o mancebo exclamou com gestos

veementes:

"E verdade, Zaratustra: dizes bem. Eu

ansiei por minha queda ao querer

chegar às alturas, e tu eras o raio que

esperava. Olha: que sou eu, desde que

tu nos apareceste? A inveja

aniquilou-me!" Assim falou o mancebo,

e chorou amargamente. Zaratustra

cingiulhe a cintura com o braço e levou-o

consigo. Depois de andarem juntos

durante algum tempo, Zaratustra

começou a falar assim:

"Tenho o coração dilacerado. Melhor do

que as tuas palavras, dizem-me os teus

olhos todo o perigo que corres.

Ainda não és livre, ainda procuras a

liberdade.

As tuas buscas desvelaram-te e

envaideceram-te de maneira excessiva.

Queres escalar a altura livre; a tua alma

está sedenta de estrelas; mas também

os teus maus instintos têm sede de

liberdade.

Os teus cães selvagens querem ser

livres; ladram de prazer no seu covil

quando o teu espírito tende a abrir todas

as prisões.

Para mim, és ainda um preso que sonha

com a liberdade. Ai, a alma de presos

assim torna-se prudente, mas também

astuta e má.

O que libertou o teu espírito necessita

ainda purificar-se. Ainda lhe restam

muitos vestígios de prisão e de lodo: é

preciso, todavia, que a tua vista se

purifique.

Sim; conheço o teu perigo; mas por

amor de mim te aconselho a não

afastares para longe de ti o teu amor e a

tua esperança!

Ainda te reconheces nobre, assim como

nobre te reconhecem os outros, os que

estão mal contigo e te olham com maus

olhos. Fica sabendo que todos tropeçam

com algum nobre no seu caminho.

Também os bons tropeçam com algum

nobre no seu caminho, e se lhe chamam

bom é tão-somente para o pôr de lado.

O nobre quer criar alguma coisa nobre e

uma nova virtude. O bom deseja o velho

e que o velho se conserve.

O perigo do nobre, contudo, não é

tornar-se bom, mas insolente,

zombeteiro e destruidor.

Ah, eu conheci nobres que perderam a

sua mais elevada esperança. E depois

caluniaram todas as elevadas

esperanças.

Agora têm vivido abertamente com

minguadas aspirações, e apenas

planearam um fim de um dia para outro

"O espirito é voluptuosidade" – diziam. E

então o se espirito quebrou as asas;

arrastar-se-a agora de trás para diante,

maculando tudo quanto consome.

Noutro tempo pensavam fazer-se

heróis; agora são folgazões. O herói é

para ele aflição e espanto.

Mas, por amor de mim e da minha

esperança te digo: não expulses para

longe de ti o herói que há na tua alma!

Santifica a tua mais elevada esperança!"

Assim falou Zaratustra.

2 SEGUNDA PARTE:

2.1 Dos Compassivos

Aqui Zaratustra fala sobre a compaixão e sobre o mascaramento da maldade. Interessante a visão do nosso protagonista sobre a dificuldade de temos para expressar nossos piores sentimentos, mesmo que eles causem mais mau do que se fossem expostos.

Dos Compassivos

"Meus amigos, aos ouvidos do vosso

amigo chegaram palavras zombeteiras:

"Olhem para Zaratustra! Então não

passa por entre nós como por entre

animais?"

Mais valeria dizer: "Aquele que pensa

passa pelo meio dos homens como por

entre animais".

O que pensa chama ao homem animal

de faces vermelhas. E por que é isto?

Não será por que teve de Se

envergonhar demasiadas vezes?

Ó! meus amigos! Assim fala o pensador:

Vergonha, vergonha! é esta a história do

homem!

E por isso o homem nobre impõe a si

mesmo o dever de não envergonhar;

quer ter recato perante todo o que sofre.

Em verdade, não me agradam Os

misericordiosos, os que se comprazem

na sua piedade; são demasiado faltos

de pudor.

Se hei de ser compassivo, não quero ao

menos que se diga que o sou; e quando

o for, que o seja só a distância.

Agrada-me também ocultar o rosto e

fugir antes de ser reconhecido. Meus

amigos, convido-vos a fazer o mesmo.

Depare-me sempre o meu destino, no

caminho que percorro, aqueles que,

como vós, não sofrem, e aqueles com

quem posso repartir esperanças,

comidas e o mel.

Em verdade, tenho feito isto e aquilo

pelos que sofrem; mas sempre me

pareceu melhor quando aprendia a

divertir-me mais.

Desde que há homens, o homem

tem-se divertido muito pouco: é esse,

meus irmãos, o único pecado original.

E, quando aprendemos melhor a

divertir-nos, esquecemo-nos melhor de

fazer mal aos outros e de inventar

dores.

Por isso lavo a mão que auxiliou o que

sofre. Por isso ainda agora restrinjo a

alma.

Envergonho-me de ter visto sofrer o

que sofre, por causa da vergonha dele;

e, quando acudi em seu auxílio, feri-lhe

rudemente o orgulho.

Grandes favores não tomam ninguém

agradecido, mas apenas vingativo; e

mesmo o pequeno benefício, não sendo

esquecido, torna-se um verme roedor.

Sede pertinazes em obter!

E distingui ao aceitar! Aconselho aos

que não têm que oferecer.

Eu, porém, sou dos que dão:

agrada-me dar, como amigo, aos

amigos. Colham, todavia, os estranhos

e os pobres, por si sós, o fruto da minha

árvore: é menos humilhante para eles.

Dever-se-iam, porém, suprimir

totalmente os mendigos. Na verdade,

desgosta-se uma pessoa por lhes dar;

e desgosta-se por lhes não dar. Assim

sucede com os pecadores e com as

consciências manchadas! Crede-me,

meus amigos: os remorsos impelem a

morder.

O pior de tudo, no entanto, são os

pensamentos mesquinhos. Vale mais

fazer mal do que pensar ruimente.

Certamente que vós dizeis: "O prazer

das pequenas maldades poupa-nos

mais de uma ação má". Mas nisso não

se deveria querer economizar.

A má ação é como uma úlcera:

desgasta, irrita e faz erupção: fala

lealmente.

"Vede: sou uma enfermidade". Assim

fala a má ação: isto é nobreza.

O pensamento mesquinho, porém, é

como a lama: arrasta-se, agacha-se, e

não quer estar em parte nenhuma, até

que as pequenas excrescências

apodrecem e abatem o corpo todo.

Pois eu digo estas palavras ao ouvido

do que está em poder do demônio:

''Ainda vale mais que deixes crescer o

teu demônio! Para ti também existe

ainda um caminho da grandeza!"

Ai, meus irmãos! Sabemos muito uns

dos outros! E há quem chegue a ser

transparente para nós, mas ainda não é

suficiente para o entendermos.

É difícil viver com os homens. uma vez

que é tão difícil guardar silêncio.

E aquele com quem somos mais

injustos não é o que nos é antipático,

mas aquele com quem nos não

importamos.

Se tens, contudo, um amigo que sofre,

sê um asilo para o seu sofrimento, mas

até certo ponto um leito muito duro, um

leito de campanha; assim ser-lhes-ás

mais útil. E se um amigo te faz mal,

diz-lhe: "Perdôo-te o mal que me

fizeste; mas se o houvesses feito a ti,

como eu poderia te perdoar?"

Assim fala todo o amor grande:

sobrepuja o perdão e a piedade. E

preciso conter o coração: porque, se o

deixamos livre, depressa perdemos a

cabeça!

Ai! Onde se fizeram mais loucuras na

terra do que entre os compassivos, e

que foi que mais prejuízo causou à terra

do que a loucura dos compassivos?

Pobres dos que amam sem estar acima

da sua piedade!

Assim me disse um dia o diabo: "Deus

também tem o seu inferno: é o seu amor

pelos homens" E ultimamente ouvi-lhe

dizer estas palavras: "Deus morreu; foi a

sua piedade pelos homens que o

matou".

Livrai-vos, pois, da piedade: por causa

dela paira sobre ele uma densa nuvem!

Eu conheço os sinais do tempo.

Relembrai também estas palavras todo

o grande amor está ainda superior à

piedade, porque aquele que ama quer

também criá-lo Ofereço-me ao meu

amor, e ao meu próximo como a mim

mesmo". Assim se exprimem todos os

criadores. Contudo, "todos os criadores

são cruéis".

Assim falou Zaratustra.

2.2 Das Tarântulas

Nietzsche ainda tem muita munição para disparar. Aqui o faz contra a vingança, os que se ocultam por trás de uma pretensa vontade de igualdade.

Das Tarântulas

"Olha: é esta a toca da tarântula!

Queres vê-la, a ela mesmo? Está aqui

a sua teia; toca-lhe para a veres tremer.

Olha: ei-la aqui, sem se fazer rogar.

Bem-vinda tarântula! No teu escuro

lombo negreja a característica marca

triangular, e eu também sei o que há na

tua alma.

Em tua alma aninha-se a vingança;

onde quer que fiques, forma-se uma

crosta negra. A vingança levanta na tua

alma torvelinhos de vingança.

Assim vos falo em parábola a vós que

levantais torvelinhos na alma,

pregadores da igualdade! Vós outros

sois para mim tarântulas sedentas de

secretas vinganças.

Eu, porém, acabarei de revelar os

vossos esconderijos, por isso me rio na

vossa cara com o meu riso das alturas!

Por isso despedaço a vossa teia, para

que a cólera vos faça sair do vosso

antro de mentira e para que a vossa

vingança apareça por detrás das vossas

palavras de "justiça".

Seja o homem salvo da vingança; é esta

para mim a ponte da esperança

superior, e um arco-íris anuncia

grandes tormentas.

As tarântulas, todavia, compreendem

doutra forma. "Justamente quando as

tempestades da nossa vingança

enchem o mundo, é quando nós

dizemos que haja justiça". Assim falam

elas entre si. "Queremos exercer nossa

vingança e lançar nossos ultrajes sobre

todos os que não são semelhantes a

nós". Isso juram a si mesmas as

tarântulas.

E acrescentam: "Vontade de igualdade,

isto será daqui por diante o nome da

virtude, e queremos erguer o grito

contra tudo o que é poderoso".

Sacerdotes da igualdade: a tirânica

loucura da vossa impotência reclama

em brados a "igualdade", por detrás das

palavras de virtudes esconde-se a

vossa mais secreta concupiscência de

tiranos!

Vaidade acre, inveja contida - talvez a

vaidade e a inveja de nossos pais - de

vós saem essas chamas e essas

loucuras de vingança.

O que o pai calou, fala o filho, e muitas

vezes vi revelado no filho o segredo do

pai.

Parecem-se com os extáticos; não é,

porém, o coração que os extasia, mas a

vingança.

E se tornam frios e sutis, não é por

agudeza, mas por inveja.

Também levam os zelos à senda dos

pensadores; é este o sinal da sua

emulação; sempre vão tão longe, tão

longe, que afinal o seu cansaço tem

sempre de adormecer até o meio da

neve.

Todos os seus lamentos têm acentos de

vingança; todos os seus elogios ocultam

malefícios, e para eles serem juizes é a

suprema felicidade. Eis aqui, todavia, o

conselho que vos dou, amigos:

desconfiai de todos os que sentem

poderosamente o instinto de castigar!

São pessoas de má raça e de má casta;

por eles assomam o polícia e o verdugo.

Desconfiai de todos os que falam muito

da sua justiça! Não és ó mel o que falta

às suas alma',:.

E, se se chamam a si mesmos "os bons

e os justos", não esqueçais que, agora

para serem fariseus, só lhes falta... o

poder.

Meus amigos, não quero que se me

misture e se me confunda.

Há quem pregue a minha doutrinada da

vida, mas são a um tempo pregadores

da igualdade e tarântulas.

Estas aranhas venenosas faIam a favor

da vida, apesar de estarem acaçapadas

nas suas cavernas e afastadas da vida:

porque assim querem prejudicar.

Querem prejudicar os que têm agora o

poder; porque entre este; é ainda a

coisa mais familiar a prática da morte.

A ser doutro modo, doutro modo

pregariam as tarântulas: porque noutro

tempo foram elas precisamente as que

mais bem souberam caluniar o mundo e

queimar hereges.

Com estes pregadores da igualdade é

que eu não quero ser misturado nem

confundido. Porque a justiça me fala

assim: "Os homens não são iguais".

Não devem tampouco chegar a sê-lo.

Que seria. pois, o meu amor ao

Super-homem se eu falasse doutro

modo?

Por mil pontes e por mil caminhos se

devem precipitar para o porvir, e sempre

haverá que colocar entre eles mais

guerras e desigualdades: assim me faz

falar o meu grande amor!

Devem-se tomar inventores de imagens

e de fantasmas em suas inimizades, e

com as suas imagens e os seus

fantasmas devem travar entre si o maior

combate.

Bom e mau, rico e pobre, alto e baixo,

todos os nomes de valores devem ser

armas e símbolos bélicos, em sinal de

que a vida sempre se há de superar

novamente a si mesma.

Ela, a própria vida, quer elevar-se às

alturas com pilares e grades: quer

escrutar os longínquos horizontes e

penetrar com os seus olhares as

supremas belezas: para isso necessita

as alturas.

Portanto, necessita alturas, necessita

degraus e contradição dos degraus e

dos que se elevam! A vida quer

elevar-se e superar-se a si mesma.

E vede, meus amigos! Aqui onde está a

caverna da tarântula, elevam-se as

ruínas de um templo antigo: olhai com

olhos iluminados.

O que aqui em outros dias elevou na

pedra os seus pensamentos para as

alturas, esse deve ter conhecido o

segredo da vida toda, com o mais sábio.

Haja até na beleza luta e desigualdade

e guerra pelo poder e pela supremacia;

isto nos ensina ele aqui no símbolo mais

luminoso. Assim como aqui abóbadas e

arcos travam corpo a corpo um divino

combate, e assim como luz e sombra

pugnam entre si em divina competência,

assim fortes e nobres sejamos nós

também inimigos, meus amigos!

Pugnemos divinamente uns contra os

outros!

Desventura! Também me picou a

tarântula, minha antiga inimiga!

Divinamente firme e bela picou-me no

dedo!

"Há de haver castigo e justiça - pensa a

tarântula:- não é em vão que canta aqui

o hino em honra da inimizade!"

Sim; está vingada! Pobre de mim; vai

minha alma girar como um turbilhão de

vingança!

No entanto, para ela não girar, meus

amigos, atai-me fortemente a esta

coluna. Antes quero ser um estilista do

que um turbilhão de vingança!

Zaratustra não é um turbilhão nem uma

tromba e, se é bailarino, não é bailarino

de tarantela!"

Assim falou Zaratustra.

2.3 Dos Doutos

Vejamos o que Zaratustra tem a nos dizer do cartesianismo, a denúncia do conhecimento pelo conhecimento. Estes Doutos que desprezam qualquer outro saber que não o produzido pelos seus cérebros privilegiados.

Dos Doutos

"Estando eu adormecido, pôs-se uma

ovelha a depenicar a coroa de hera da

minha cabeça, dizendo enquanto comia:

"Zaratustra já não é um sábio".

Dito isto, retirou-se altiva e

desdenhosa.

Assim me contou um rapazinho. Gosto

de deitar onde as crianças estão

brincando, junto do muro gretado, sob

os cardos e as vermelhas papoulas.

Ainda sou um sábio para as crianças, e

também para os cardos e para as

papoulas vermelhas. Todos eles são

inocentes até na sua maldade.

Já não sou um sábio para as ovelhas:

assim o quer a minha sorte. Bendita

seja!

Porque é esta a verdade: saí da casa

dos sábios atirando com a porta.

Demasiado tempo esteve a minha alma

faminta sentada à sua mesa; eu não

estou assim como eles, adestrado para

o conhecimento como para descascar

nozes.

Amo a liberdade e o ar na terra fresca; e

até me agrada mais dormir em peles de

bois do que nas suas honrarias e

dignidades.

Sou ardente demais e estou demasiado

consumido pelos meus próprios

pensamentos; falta-me com freqüência

a respiração; então necessito procurar o

ar livre e sair de todos os

compartimentos empoeirados.

Eles, porém, estão sentados muito

frescos à fresca sombra: em parte

alguma querem passar de

espectadores, e livram-se bem de se

sentar onde o sol caldeia os degraus.

Com os que se postam no meios da rua

a olhar de boca aberta quem passa,

assim eles aguardam de boca aberta os

pensamentos dos outros.

Se lhes toca com as mãos

involuntariamente levantam pó em torno

de si, como sacos de farinha; mas quem

suspeitaria que o seu pó procede do

grão e das douradas delícias dos

campos de estio?

Se dão mostras de sábios,

horrorizam-me com as suas sentenças

e as suas verdades: a sua sabedoria

cheira amiúde como se saísse de um

pântano, e indubitavelmente já nele ouvi

cantar as rãs.

São destros e têm dedos hábeis: que

tem que ver a minha simplicidade com a

sua complexidade? Os seus dedos

entendem à maravilha tudo quanto seja

fiar. ajuntar e tecer; tanto assim que

fazem as meias do espírito.

São bons relógios - sempre que haja o

cuidado de lhes dar corda. - Indicam

então a hora sem falar e com um ruído

modesto.

Trabalham como moinhos e morteiros:

basta lançar-lhes grão! Eles já sabem

moer bem o grão e convertê-lo em

branca farinha.

Olham os dedos uns dos outros com

desconfiança. Inventivos em pequenas

maldades, espreitam aqueles cuja

ciência coxeia; espreitam-nos como

aranhas.

Sempre os vi preparar veneno com

precaução, tapando as mãos luvas de

cristal.

Também jogam com dados falsos, e

vi-os jogar com tal entusiasmo que

estavam banhados de suor. Somo

estranhos uns aos outros, e as virtudes

ainda me contrariam mais do que as

suas falsidades e trapaças.

E quando eu andava entre eles,

mantinha-me sempre por cima deles; e

é por isso que me olham de soslaio.

Não querem ouvir andar ninguém por

cima das suas cabeças; por isso entre

mim e as suas cabeças puseram

ramagem, terra e lixo.

Assim abafaram o ruído dos meus

passos; e até agora os mais doutos são

os que menos me têm ouvido.

Entre mim e eles interpuseram todas as

fraquezas e todas as faltas dos homens:

"andar falso" eis como chamam a isto

nas suas casas.

Eu, porém, apesar de tudo, ando

sempre por cima da cabeça deles com

os meus pensamentos; e se quisesse

andar com os meus pr6prios defeitos,

ainda assim andaria sobre eles e sobre

as suas cabeças.

Que os homens não são iguais: assim

fala a justiça.

E o que eu quero não poderiam eles

querer!"

Assim falou Zaratustra.

2.4 Dos Grandes Acontecimentos

E o que Zaratustra poderia vir a ter com o Demônio? Que tipo de conversação poderiam estabelecer? Poderia existira algo mais poderoso que próprio cão do inferno?

Dos Grandes Acontecimentos

Há uma ilha no mar – perto das ilhas

Bem-aventuradas de Zaratustra – onde

fumega constantemente uma montanha

de fogo. O povo, e mormente as velhas,

dizem que essa ilha está colocada como

um penhasco diante da porta do inferno;

mas o mesmo atalho que leva a essa

porta atravessa a ígnea montanha.

Sucedeu, pois, que na época em que

Zaratustra vivia nas ilhas

Bem-aventuradas, ancorou um baixel

na ilha onde se acha a montanha

fumegante, e a sua tripulação saltou

para a terra para atirar aos coelhos. Ao

meio dia, porém quando novamente

estavam reunidos o capitão e a sua

gente, viram de súbito um homem

atravessas o ar perto deles, e uma voz

pronunciou nitidamente estas palavras:

"Já é tempo! Não há um instante a

perder!"

Quando a visão se aproximou mais –

passava rápida, como uma sombra, em

direção da montanha de fogo -,

reconheceram sobressaltados

Zaratustra: porque já todos conheciam,

exceto o capitão, e lhe queriam como

quer o povo, misturando em partes

iguais amor e receio.

"Olhem", disse o piloto, "é Zaratustra

que vai para o inferno!"

Pela mesma época em que estes

marinheiros arribaram à ilha do fogo,

correu o rumor de que desaparecera

Zaratustra, e, interrogados os amigos,

responderam que durante a noite

embarcara sem dizer para onde.

Houve, por conseguinte, certa

inquietação; mas ao fim de três dias

essa inquietação aumentou com a

narrativa dos marinheiros. A verdade é

que os discípulos deles se riam desses

rumores, e até um deles chegou a dizer:

Prefiro acreditar Zaratustra quem levou

o demônio". No íntimo, porém, todos

estavam cheios de angústia e de

sobressalto.

Grande foi, portanto, o seu alvoroço

quando, ao fim de cinco dias, Zaratustra

lhes apareceu.

Eis a descrição da conversa que

Zaratustra teve com o cão do fogo: "A

terra", disse, "tem pele e essa pele sofre

enfermidades; uma delas, por exemplo,

chama-se homem".

E a outra chama-se "cão do fogo".

Acerca dele têm os homens dito e

deixado dizer muitas mentiras. Para

aprofundar esse segredo cruzei o mar e

vi a verdade, nua, nua dos pés a

cabeça.

Sei agora a que me hei de ater sobre o

cão do fogo, assim como sobre todos os

estragos que atemorizam, e não só as

velhas.

Sai da tua profundidade do mar, cão do

fogo – exclamei – e confessa quão

profunda é essa profundidade! Donde

tiras o que vomitas?

Bebes copiosamente do mar: é isso que

o revela o sal da tua facúndia.

Verdadeiramente, para um cão das

profundidades, tomas demasiado

alimento da superfície.

Olho-te em suma, como o ventríloquo

da terra, e sempre que ouvi falar a

demônios de erupções e estragos,

sempre me parecem semelhantes a ti,

com o teu sal, as tuas mentiras e tuas

trivialidade.

Sabes mugir quer que andes sempre há

de haver perto de ti lodo e coisas

esponjosas, cavernosas e comprimidas:

tudo isso quer liberdade.

"Liberdade!" é o teu grito predileto, mas

eu perdi a fé nos "grandes

acontecimentos" desde que em torno

deles haja muitos uivos e muita

fumarada.

Creia em mim ruído do inferno! Os

acontecimentos maiores não são os

mais ruidosos, mas as nossas horas

mais silenciosas.

O mundo gira, não ao redor dos

inventores de estrondos novos, mas à

roda dos inventores de valores novos:

gira sem ruído.

E confessa-o! Quando o teu ruído e o

teu fumo se dissipavam, sempre

sucedia Ter-se passado coisa pouco

importante. Que importa que uma

cidade se torne múmia e que caia no

lodo uma coluna!

E acrescentarei mais estas palavras

para os destruidores de colunas: "É

rematada loucura deitar sal no mar e

colunas no lodo.

A coluna jazia no lodo de desprezo; mas

a sua lei quer que surja do desprezo

com nova vida e beleza. Ergue-se

agora com mais divina aparência e

sedutor sofrimento, e ainda dará graças,

destruidores, por a terdes derrubado".

É este, porém, o conselho que dou aos

reis e às igrejas, e a quanto fraqueja

pela idade e pela virtude: Deixa-vos

derrubar para volverdes à vida e de vós

se assenhoreie a virtude!" Assim falei

diante do cão do fogo; mas ele

interrompeu-me rosnando e

perguntou-me: "Igreja? Isso que é?

Igreja – Respondi é uma espécie de

Estado, e a espécie mais enganosa.

Cala-te porém cão hipócrita: tu

conheces a tua raça melhor que

ninguém!

O Estado é um cão hipócrita como tu;

como a ti, agrada-lhe falar fumegando e

uivando, para fazer crer, como tu que

fala saindo das entranhas das coisas.

Que o estado empenha-se em ser o

animal mais importante da terra. E julga

sê-lo.

Quando disse isto, o cão do fogo

pareceu louco de ciúme. "Quê!",

exclamou. "O animal mais importante da

terra?"

E julga sê-lo!? E da sua garganta

saíram vozes tão terríveis que eu supus

o asfixiaram a cólera e a inveja.

Por fim foi-se calando, diminuindo os

seus uivos, mas, quando ele se calou,

disse-lhe eu rindo:

"Encolerizas-te, cão do fogo! Por

conseguinte tenho razão.

E para eu conservar a razão, deixa-me

falar-te de outro cão do fogo; este fala

realmente do coração da terra.

O seu hálito é de ouro e uma chuva de

ouro: assim o quer o seu coração. As

cinzas, o fumo e a espuma quente, para

ele que são?

Do seu seio voa um riso como uma

nuvem colorida: é inimigo dos teus

murmúrios, das tuas erupções, e da

raiva das tuas entranhas. O seu ouro e

o seu riso, porém, tira-os do coração da

terra, porque, não sei se sabes que o

coração da terra é de ouro!"

Ao ouvir isto o cão de fogo não pôde

escutar-me mais. Envergonhado, meteu

o rabo entre as pernas e, arrastando-se

para a sua casota, ia dizendo, confuso:

"Guão! guão!"

Assim contava Zaratustra; mas os

discípulos quase o não ouviam, tanta

era a sua vontade de lhes falar dos

marinheiros, dos coelhos e do homem

voador.

"Que hei de eu pensar disso?", disse

Zaratustra. Acaso serei um fantasma?

Isso deve ter sido a minha sombra.

Já ouvistes falar do viajante e da sua

sombra?

O certo é que devo prendê-la mais, ou

tomará a prejudicar-me a reputação".

E Zaratustra tornou a menear a cabeça

com admiração: "Que devo pensar

disso?", repetiu.

Por que gritaria o fantasma? "Já é

tempo! Não há um instante a perder!"

Mas, para que é que já é tempo?"

Assim falou Zaratustra.

3 TERCEIRA PARTE:

3.1 Antes do Sol Nascer

Pode alguém expressar um amor com maior profundidade? O amor pela natureza, pelo outro e afinal por si mesmo? Pode se reconhecer em tantos lugares ao mesmo tempo?

Antes do Nascer do Sol

"Ó, céu desenrolado sobre mim! Céu

claro e profundo! Abismo de luz! Ao

contemplar-te estremeço de divinos

desejos!

Elevar-me à minha altura: eis a tua

profundidade! Cobrir-me com a tua

pureza: eis a minha inocência! O deus

oculto na sua beleza: assim ocultas as

tuas estrelas. Não falas: assim me

anuncias a tua sabedoria

Mudo surgiste para mim sobre o

fervente mar: o teu amor e o teu pudor

revelam-se à minha alma fervente.

Belo, vieste a mim, velado na tua

beleza: mudo, falaste-me, revelando-te

na tua sabedoria. Ó como pude eu não

adivinhar todos os pudores da tua alma!

Antes de o sol vir até mim, o mais

solitário.

Somos amigos de sempre: as nossas

penas são o fundo dos nossos seres,

são-nos comuns; até o sol é comum.

Não falamos porque sabemos

demasiadas coisas: calamo-nos e

entendemo-nos por sorrisos.

Não és tu a luz do meu fogo? Não és tu

a alma irmã da minha inteligência? Tudo

aprendemos juntos; juntos aprendemos

a elevar-nos sobre nós, e a sorrir, sem

nuvens, para baixo, com límpidos olhos,

desde remotas paragens, quando os

nossos pés se desvanecem como névoa

vaporosa a imposição, o fim e o erro.

E quando eu caminhava só, de que

tinha a minha alma fome durante as

noites e nos caminhos do erro? E

quando eu escalava montes, a quem

procurava nos píncaros senão a ti?

E todas as minhas viagens e todas as

minhas ascensões não passavam de

um expediente e recurso de inércia. O

que a minha vontade toda quer é voar,

voar para ti!

E que odiava eu mais do que as nuvens

e tudo o que te empana? E odiava até o

meu próprio ódio porque te empanava!

Tenho aversão às nuvens, a esses

gatos monteses que se arrastam;

tiram-nos a ti e a mim o que nos é

comum: a imensa e infinita afirmação

das coisas.

Nós temos aversão às rasteiras nuvens,

a esses seres de meio-termo e de

composições, a esses seres mistos que

não sabem nem bendizer nem maldizer

com todo o seu coração.

Preferia estar metido num túnel ou num

abismo sem ver o céu, a ver-te a ti, céu

de luz, empanado pelas nuvens que

passam

E muitas vezes tenho sentido desejos

de as trespassar com fulgurantes fios de

ouro e rufar como trovão na sua pança

de caldeira: rufar de cólera, visto que

me roubam a mim a tua afirmação – céu

puro! Céu sereno! Abismo de luz! – e

roubam-te a ti em mim. Que eu prefiro o

ruído e o troar e as execrações do mau

tempo a essa calma medida e duvidosa

de gatos. E "quem não sabe bendizer

deve aprender a maldizer!" De um

luminoso céu me caiu esta máxima

luminosa: Até nas escuras noites brilha

esta estrela no meu céu.

Eu, porém, bendigo e afirmo sempre,

contanto que me rodeies, céu sereno,

abismo de luz! A todos os abismos,

pois, levo a minha benfeitora afirmação.

Eu cheguei a ser o que bendiz e afirma;

tenho sido um lutador a fim de um dia

ter as mãos livres para abençoar.

E a minha bênção consiste em estar por

cima de cada coisa com o seu próprio

céu, a sua redonda abóbada, a sua

abóbada cerúlea e sua eterna

serenidade: e bem-aventurado aquele

que assim abençoa!

Que todas as coisas são batizadas na

fonte da eternidade e além do bem e do

mal; mas o bem e o mal mesmo não são

mais do que sombras interpostas,

úmidas aflições e nuvens passageiras.

Há bênção certamente e não maldição

quando eu ensino: "Sobre todas as

coisas se encontra o céu Azar, o céu

Inocência, o céu Acaso e o céu Ufania".

"Por azar , e esta a mais antiga nobreza

do mundo: eu a restitui a todas as

coisas; eu as livrei, da servidão do fim.

Essa liberdade e essa eternidade

celeste coloquei-as como abóbadas

cerúleas sobre todas as coisas, ao

ensinar que acima delas, e por elas,

nenhuma "vontade eterna" queria.

Eu pus, em vez desta vontade, essa

petulância, essa loucura quando

ensinei: Há uma coisa impossível em

qualquer parte, e essa coisa é a

racionalidade.

Um pouco de razão, um grão de

sensatez, disperso de estrela em

estrela, é a levedura indubitavelmente

misturada a todas as coisas: por causa

da loucura se acha a sensatez

misturada a todas as coisas!

Um pouco de sensatez é possível, mas

eu encontrei em todas as coisas esta

benfeitora certeza: preferem bailar sobre

os pés do acaso.

O, céu puro e excelso! A tua pureza

para mim consiste agora em que não

haja nenhuma aranha, nem teia de

aranha eterna da razão: em seres um

salão de baile para os azares divinos,

uma mesa divina para os divinos dados

e jogadores de dados.

No entanto, sorriste? Disse coisas

indizíveis? Maldisse-te querendo

abençoar-te?

O que te faz sorrir é a vergonha de ser

dois. Mandas-me retirar e calar, porque

chega agora o dia? O mundo é

profundo, e mais profundo que jamais

pensou o dia. Nem tudo pode falar

diante do dia. Mas as chega o dia.

Separemo-nos então!

Ó, céu desenrolado sobre mim, céu

pudico e incendido! Ó, felicidade

antecedente à saída do sol! Chega o

dia. Separemo-nos!"

Assim falou Zaratustra.

3.2 De Passagem

Vejamos a em que se transformam as cidades do tempo de Nietzsche. O que ele vê nestes monstros e como os trata, e como trata os subprodutos deste mundo industrializado.

De Passagem

Atravessando assim lentamente muitos

povos e cidades, tomava Zaratustra

para a sua montanha e a sua caverna. E

caminhando de passagem chegou

também de improviso à porta da grande

cidade; mas aí caiu sobre ele,

impedindo-lhe a entrada com os braços

estendidos, um doido furioso. Era o

mesmo louco a que o povo chamava "o

macaco de Zaratustra" porque imitava

um tanto a forma e a cadência da sua

frase, e lhe agradava também explorar o

tesouro da sua sabedoria.

O doido, portanto, falou assim a

Zaratustra:

"Ó, Zaratustra! é esta a grande cidade:

aqui nada tens a procurar, mas tudo a

perder.

Para que queres introduzir-te neste

lodaçal? Tem dó dos teus pés! Cospe à

porta da cidade e torna sobre os teus

passos!

Isto é um inferno para os pensamentos

solitários. Aqui se cozem vivos os

grandes pensamentos, aqui se reduzem

à papa.

Aqui apodrecem todos os grandes

sentimentos; aqui só se pode ouvir o

crepitar das paixonetas ressequidas.

Não sentes já o cheiro dos matadouros

e das baiúcas do espirito? Não fumega

esta cidade com os vapores dos

espíritos sacrificados? Não vês,

penduradas, as almas nos galhos

sujos? E desses frangalhos, todavia,

fazem periódicos!

Não ouves como aqui se troca o

engenho em jogo de palavras? Cospem

repugnantes intrigas verbais! E dessas

intrigas fazem os de cá, periódicos!

Provocam-se sem saber por que.

Entusiasmam-se e não sabem por que.

Chocalham com a sua lâmina de folha e

tilintam com o seu ouro.

Sentem frio e procuram calor nas

bebidas quentes; acaloram-se e

procuram frescura nos espíritos álgidos;

a opinião pública consome-os e

torna-os febris.

Todos os apetites e todos os vícios

assentaram aqui, mas há também

virtuosos, há muitas virtudes hábeis e

laboriosas, virtudes com dedos

expedidos, com carnes duras para

suportar boas assentadas, com o peito

adornado de cruzinhas bentas por

raparigas enchumaçadas e sem

nádegas.

Também há aqui muita devoção, muita

lisonja cortesã e muitas baixezas ante o

deus dos exércitos.

"De cima" chovem as estrelinhas e as

magnânimas cuspideiras; para cima vão

os desejos de todos os peitos

desprovidos de estrelinhas.

A lua tem a sua corte, e a corte seus

satélites; mas o povo mendicante e as

hábeis virtudes mendicantes rezam a

tudo o que vem da corte.

"Eu sirvo, tu serves, nós ser vimos."

Assim rezam ao soberano todas as

virtudes hábeis, para que a merecida

estrela se prenda afinal ao peito

esquálido.

A lua, porém, gira em torno de tudo

quanto é terrestre; assim também o

soberano gira em torne do que há de

mais terrestre: e ouro dos merceeiros. O

deus dos exércitos não é o deus das

barras de ouro; o soberano propõe, mas

o merceeiro... dispõe.

Em nome de tudo quanto é claro, forte e

bom que em ti existe, Zaratustra, cospe

a esta cidade dos merceeiros e torna

para trás!

Aqui corre sangue viciado, pobre e

espumoso, por todas as veias; cospe à

grande cidade, que é o grande

vazadouro onde se acumulam todos os

excrementos.

Cospe à cidade das almas deprimidas e

dos peitos estreitos, dos olhos

penetrantes e dos dedos viscosos; à

cidade dos importunos e dos

impertinentes, dos escritorezitos e dos

palradores, dos ambiciosos

exasperados; à cidade onde se reúne

todo o carcomido, desconsiderado,

sensual, sombrio putrefato, ulcerado e

conjurado; cospe à grande cidade e

torna sobre os teus passos!" Neste

ponto, porém, Zaratustra interrompeu o

louco furioso e tapou-lhe a boca.

"Cala-te", exclamou Zaratustra. "Já é

tempo de me deixares com a tua

linguagem e as tuas maneiras.

Por que tens vivido tanto tempo à beira

do pântano, a ponto de tu mesmo te

converteres em rã e sapo?

Não correrá agora em tuas próprias

veias um sangue de pântano, viciado e

espumoso, para teres aprendido a

guinchar e a blasfemar assim?

Por que te não retiraste para o bosque?

Por que não lavraste a terra? Não está o

mar cheio de ilhas verdejantes?

Desprezo o teu desdém; e já que me

prevines, por que te não prevenistes a ti

mesmo?

Só do amor há de surgir o meu desdém

e a minha ave anunciadora; não do

pântano!

Chamam-te o meu macaco, doido

raivoso; mas eu chamo-te suíno

grunhidor; com o teu grunhido acabas

por me estropiar o meu elogio da

loucura.

Em princípio, quem foi que te fez

grunhir? Não te adularam bastante. Por

isso te sentaste ao lado dessas

imundícies, a fim de teres numerosas

razões de vingança. Que a vingança,

louco vaidoso, é a tua espuma toda:

calei-te perfeitamente!

A tua língua de louco, porém,

prejudica-me até naquilo em que tens

razão. E ainda que tivesse mil vezes

razão a palavra de Zaratustra, tu

sempre ma tirarias com a minha própria

palavra!"

Assim falou Zaratustra, e, olhando a

grande cidade, suspirou e ficou longo

tempo calado. Por fim disse:

"Também eu estou desgostoso nesta

grande cidade, e não é só deste louco.

Aqui e ali nada há que melhorar, nada

há que piorar.

Ai desta grande cidade! Quereria ver já

a coluna de fogo em que se há de

consumir.

Que tais colunas de fogo hão de

proceder o grande meio-dia. Isto,

contudo, tem o seu tempo e o seu

próprio destino.

A ti, louco, te dou este ensinamento a

modo de despedida: onde já se não

pode amar, deve-se... passar!"

Assim falou Zaratustra, e passou por

diante do louco e da grande cidade.

3.3 Do Grande Anelo

Zaratustra apresenta um dialogo magnifico com sua alma. Aqui procura respostas fundantes para o ser. Percebe-se o grande amor que tem por si.

Do Grande Anelo

"Alma minha, ensinei-te a dizer "hoje",

como "um dia" e "noutro tempo e a

passar dançando por cima de tudo aqui,

acolá e além.

Alma minha, livrei-te de todos os

recantos; afastei de ti o pó as aranhas e

a obscuridade.

Alma minha, lavei-te do mesquinho

pudor e da virtude meticulosa, e

habituei-te a estar nua ante os olhos do

sol.

Com a tempestade que se chama

"espírito" soprei sobre o teu mar revolto

e expulsei dele todas as nuvens e até

estrangulei o estrangulador que se

chama "pecado".

Alma minha, dei-te o direito de dizer

"não" como a tempestade, e de dizer

sim como o céu límpido: agora estás

serena como a luz e passas através das

tempestade.

Alma minha, restitui-te a liberdade

sobre o que está criado e por criar; e

quem como tu conhece a

voluptuosidade do futuro?

Alma minha, ensinei-te o desprezo que

não vem como o caruncho, o grande

desprezo amante que onde mais

despreza mais ama.

Alma minha, ensinei-te a persuadir de

tal modo, que as próprias coisas se

rendem a ti tal como o sol que persuade

o próprio mar a erguer-se à sua altura.

Alma minha, afastei de ti toda a

obediência, toda a genuflexão e todo o

servilismo; eu mesmo te dei o nome de

"trégua de misérias" e de "destino".

Alma minha, dei-te nomes novos e

vistosos brinquedos, chamei-te

"destino" e "circunferência das

circunferências", e "centro do tempo" e

"abóbada cerúlea".

Alma minha, dei a beber ao teu domínio

terrestre toda a sabedoria, já os vinhos

novos, já os mais raros e fortes da

sabedoria, os de tempo imemorial.

Alma minha, derramei em ti todo o sol e

toda a noite, todos os silêncios e todos

os anelos: cresceste então para mim

como uma vida.

Alma minha, agora estás aí, repleta e

pesada, como vide de cheios úberes, de

dourados cachos exuberantes;

exuberante e oprimida de ventura,

esperando entre a abundância e

envergonhada da sua expectação.

Alma minha, agora já não há em parte

alguma alma mais amante, mais ampla

e compreensiva! Onde estariam o futuro

e o passado mais perto um do outro do

que em ti?

Alma minha, dei-te tudo, por ti esvaziei

as mãos...e agora! Agora dizes-me

sorrindo, cheia de melancolia: "Qual de

nós dois deve agradecer?"

Não é o doador que deve estar

agradecido àquele que houve por bem

aceitar?

Não será uma necessidade o dar? Não

será... pena aceitar?

Alma minha, compreendo o sorriso da

tua melancolia: a tua exuberância

estende agora as mãos anelantes!

A tua plenitude dirige os seus olhares

aos mares rugidores, busca e aguarda:

o desejo infinito da plenitude lança um

olhar através do céu sorridente dos teus

olhos!

E na verdade, alma minha, quem te

veria o sorriso sem se desfazer em

lágrimas?

Os próprios anjos prorrompem em

pranto vendo a excessiva bondade do

teu sorriso.

A tua bondade, a tua bondade

demasiado grande, não se quer lastimar

nem chorar e, contudo, alma minha, o

teu sorriso deseja as lágrimas, e a tua

trêmula boca os soluços. "Não será todo

o pranto uma queixa, e toda a queixa

uma acusação?" Assim dizes contigo, e

por isso preferes sorrir, alma minha, a

derramar a tua pena, a derramar em

torrentes de lágrimas toda a pena que te

causa a tua plenitude e toda a

ansiedade que faz que a vinha suspire

pelo vindimador e pelo podão do

vindimador. Se não queres chorar,

porém, chorar até o fim a tua purpúrea

melancolia, precisas cantar, alma

minha. - Já vês: eu, que predico isto, eu

mesmo sorrio. - Precisas cantar com

voz dolente, até os mares ficarem

silenciosos para escutar o teu grande

anelo.

Até que em anelantes e silenciosos

mares se balouce O barco, a dourada

maravilha, em tomo de cujo ouro se

agitam todas as coisas boas, más e

maravilhosas, e muitos animais grandes

e peque-nos, e tudo quanto possui

pernas leves e maravilhosas para poder

correr por caminhos de violetas até à

áurea maravilha, até à barca voluntária

e até ao seu dono.

Ele é, porém, o grande vindimador que

espera com a sua podadeira de

diamante, o teu grande libertador, alma

minha, o inevitável... para quem só os

cantos do futuro sabem encontrar

nomes. E na verdade, já o teu hálito tem

o perfume dos cantos do futuro, já ardes

e sonhas, já a tua sede bebe em todos

os poços consoladores de graves ecos,

já a tua melancolia descansa na

beatitude dos cantos do futuro! Alma

minha, dei-te tudo, até o meu último

bem, e as minhas mãos por ti se

esvaziaram: ter-te dito que cantasses

foi o meu último dom.

Disse-te que cantasses. Fala. portanto,

fala: qual de nós dois deve agora

agradecer? Mas não; canta para mim,

canta, alma minha! E deixa-me

agradecer-te!"

Assim falou Zaratustra

3.4 O Canto do Outro Baile

Como no anterior, aqui Zaratustra dialoga com sua vida:

O Outro Canto de Baile

"Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi

reluzir outro nos teus olhos noturnos, e

essa voluptuosidade paralisou-me o

coração: vi brilhar uma barca dourada

que se submergia em águas noturnas,

uma barca dourada que se submergia e

reaparecia fazendo sinais!

Tu dirigias um olhar aos meus pés,

doidos por dançar, um olhar acariciador,

terno, ri sonho e interrogador.

Duas vezes apenas agitaste com as

mãos as tuas castanholas, e já os pés

me pulavam, ébrios.

Os calcanhares erguiam-se; os dedos

escutavam para te compreender; não

tem o dançarino os ouvidos nos dedos

dos pés?

Saltei ao teu encontro; tu retrocedeste

ao meu impulso, e até a mim serpeava a

tua voadora e fugidia cabeleira.

Num pulo me afastei de ti e das tuas

serpentes: já tu te erguias com os olhos

cheios de desejos.

Com lânguidos olhares me mostras

sendas tortuosas; por tortuosas sendas

aprende astúcias o meu pé.

Receio-te quando te aproximas, amo-te

quando estás longe; a tua fuga

atrai-me; as tuas diligências detêm-me.

Sofro; mas, por ti, que não sofreria eu?

Ó, tu cuja frialdade incendeia, cujo ódio

seduz, cuja fuga prende, cujos enganos

comovem!

Quem te não odiará, grande carcereira,

sedutora, esquadrinhadora e

descobridora! Quem te não amará,

inocente, impaciente, arrebatadora

pecadora de olhos infantis!

Aonde me arrastas agora, indômito

prodígio? E já me tornas a fugir, doce

esquiva, doce ingrata!

Dançando sigo as tuas menores

pisadas. Onde estás? Dá-me a mão!

Ou um dedo sequer!

Há por aí cavernas e bosques;

extraviar-nos-emos. Pára! Detém-te!

Não vês revoarem corujas e morcegos?

Eh! lá, coruja! Morcego! Quereis brincar

comigo? Onde estamos? Com os cães

aprendestes a uivar e a rosnar.

Mostravas-me graciosamente os

brancos dentes, e os teus malvados

olhos asseteavam-me por entre as

frisadas madeixas.

Que correria por montes e vales! Eu sou

o caçador; queres tu ser o meu cão?

Agora, a meu lado! e depressa,

invejável solitária! Acima agora! Ó! Ao

voltar, cai. Olha como estou aqui

estendido! Olha, altaneira, como imploro

o teu socorro! Quereria continuar

contigo... por caminhos mais

agradáveis! pelos caminhos do amor,

através de esmaltados ou pelos que

marginam o lago, onde nadam e saltam

dourados peixes! Estás cansada,

agora? Ali em baixo há ovelhas e

vespertinos arrebóis. Não é tão bom

adormecer ao som da flauta dos

pastores?

Então, estás assim cansada? Vou-te

levar lá; ao menos deixa pender os

braços. E tens sede?... Poderia dar-te

qualquer coisa...Mas a tua boca não

quer beber.

Que maldita serpente esta, feiticeira

fugidia, veloz e ágil. Aonde te meteste?

Sinto na cara dois sinais da tua mão,

dois sinais vermelhos!

Estou deveras farto de te seguir sempre

como ingênuo cordeirinho! Feiticeira, até

agora cantei para ti: agora, para mim

deves tu... gritar! Deves dançar e gritar

ao compasso de meu látego!

Esquecê-lo-ia eu? Não!"

II

Eis o que então respondeu a vida,

tapando os delicados ouvidos:

"Ó! Zaratustra! Não vibres tão

espantosamente o látego? Bem sabes

que o ruído assassina os

pensamentos... e assaltam-me agora

pensamentos tão ternos!

Nós não somos bons nem maus para

nada! Além do bem e do mal

encontramos a nossa ilha e o nosso

verde prado: só nos dois o

encontramos! Por isso nos devemos

amar um ao outro!

E conquanto nos não amemos de todo o

coração, será caso para nos

enfadarmos? Enfadam-se as pessoas

por não se amarem de todo o coração?

É que eu te amo, te amo muitas vezes

com excesso, sabei-o demais, a razão

é que estou ciosa da tua sabedoria. Ah,

que velha louca é a sabedoria!

Se alguma vez a tua sabedoria te

deixasse, também logo o meu amor te

deixaria".

Então a vida olhou pensativa para trás e

em torno de si, e disse em voz baixa:

"Ó, Zaratustra não me és bastante fiel!

Ainda falta muito para me teres o amor

que dizes; sei que pensas deixar-me

breve.

Há um velho bordão pesado

pesadíssimo, que ressoa de noite até lá

acima, à tua caverna; quando ouves

esse sino dar a meia-noite, pensas -

bem o sei, Zaratustra - pensas

deixar-me breve!".

"Assim é,,, respondi titubeando, "mas tu

também sabes..." E disse-lhe uma coisa

ao ouvido colado à sua emaranhada

cabeleira, às suas douradas e

revoltadas madeixas.

"Tu sabes isso, Zaratustra? Ninguém

sabe isso..." Olhamo-nos, e dirigimos o

nosso olhar para o verde prado por

onde corria a frescura da tarde, e

choramos juntos. Mas então a vida era

para mim mais cara do que jamais o foi

toda minha sabedoria".

Assim falou Zaratustra

III

Uma!

Alerta, homem!

Duas!

Que diz a meia-noite profunda?

Três!

"Tenho dormido, tenho dormido...

Quatro!

" De um profundo sono despertei.

Cinco!

"O mundo é profundo...

Seis!

"E mais profundo do que o dia julgava

Sete!

"Profunda é a sua dor...

Oito!

"E a alegria... mais profunda que a

aflição.

Nove!

"A dor diz: Passa!

Dez!

"Mas toda alegria quer a eternidade...

Onze!

"Quer profunda eternidade!

Doze!

4 QUARTA PARTE:

4.1 Fora de Serviço

Aqui Zaratustra começa a reunir hóspedes para sua caverna. O encontro com o Sacerdote é colocado aqui, também a morte de Deus.

Fora de Serviço

Pouco depois de se livrar do

encantador, Zaratustra viu outra pessoa

sentada à beira do caminho que ele

seguia, um homem alto e escuro, de

semblante pálido e afilado; este

contrariou-se extraordinariamente. "Mal

vai! - disse consigo. - Vejo aflição

mascarada, que parece coisa de

sacerdotes. Que querem estes no meu

reino?

Que! Mal me livrei daquele encantador e

já passa pelo meu caminho outro

nigromante, um mago que impõe as

mãos, um sombrio milagreiro por amor

de Deus, um compungido difamador do

mundo: leve-o o demônio!

O demônio, porém, nunca se acha onde

devia; sempre chega tarde esse maldito

anão, esse pateta!"

Assim praguejava Zaratustra,

impaciente e pensando na maneira de

passar diante do homem negro olhando

para outro lado. As coisas, porém,

sucederam doutra forma: porque no

mesmo instante o viu aquele que estava

sentado; e como quem tem uma sorte

inesperada, pôs-se de pé de um salto e

encaminhou-se para Zaratustra.

"Quem quer que sejas – disse -,

viajante errante, auxilia um extraviado a

quem poderia suceder alguma

desgraça!

Isto aqui é para mim um mundo

estranho e longínquo; também ouvi

rugidos de feras; e quem poderia

dar-me guarida já não existe.

Procurei o último homem piedoso, um

santo e um ermitão, único que no seu

bosque ainda não ouvira dizer o que

toda a gente hoje sabe.

"Que é que toda a gente sabe hoje? -

perguntou Zaratustra. - Talvez já não

esteja vivo o Deus antigo, o Deus em

quem dantes acreditava toda a gente?"

"Assim o dizes - respondeu tristemente

o velho. - E eu servi esse Deus antigo

até à sua última hora.

Agora, porém, estou fora de serviço;

encontro-me sem amo e. apesar disso,

não sou livre; por isso só me comprazo

nas minhas recordações. Por isso subi a

estas montanhas, para tornar a celebrar

aqui uma festa, como convém a um

antigo Papa e padre da Igreja, - porque

fica sabendo que sou o último Papa! -

uma festa e piedosa lembrança e culto a

Deus.

Mas agora morreu o mais piedoso dos

homens, esse santo do bosque que

continuamente louvava Deus com

cantos e preces.

Já o não encontrei quando descobri a

choça; mas vilã dois lobos que uivavam

por causa da sua morte - porque todos

os animais o queriam. - Ao ver aqui

fugi.

Vim depois, debalde a estes bosques e

a estas montanhas! Por conseqüência o

meu coração decidiu-se a procurar

outro, o mais piedoso de todos os que

não acreditam em Deus: Zaratustra!"

Assim falou o velho, e fixou um olhar

penetrante no que estava de pé diante

dele. Zaratustra pegou na mão do antigo

Papa e contemplou-a largo tempo com

admiração.

"Olha, então, venerando - disse-Ihe

logo -, que mão estendida tão bela! É a

mão de quem deu sempre a benção.

Agora, porém, estreita aquele a que tu

procuras, a mim, Zaratustra.

Eu sou Zaratustra, o ímpio que diz:

"Quem há mais ímpio do que eu, para

me regozijar com o seu ensinamento?"

Assim falou Zaratustra, penetrando com

o seu olhar nos pensamentos mais

íntimos do velho Papa. Por fim, este

principiou a dizer:

"Aquele que mais o amava e o possuía

foi também o que mais o perdeu. Olha:

creio que agora o mais ímpio de nós sou

eu. Mas quem se poderia regozijar

disso?"

"Serviste-o até o fim? - perguntou

Zaratustra pensativo, depois de longo e

profundo silêncio.

Sabes como morreu? É certo o que se

diz, que o asfixiou a compaixão? O ver o

homem suspenso Da cruz e não poder

suportar que O amor pelos homens

viesse a ser seu inferno e afinal a sua

morte?

O antigo Papa não respondeu, mas

olhou de soslaio com espanto e

expressão dolorosa e sombria.

"Deixa-o ir - acrescentou Zaratustra

depois de longa reflexão, cravando

sempre os seus olhos nos do velho.

Deixa-o ir - findou. E embora te honre

dizer só bem desse morto, tu sabes

como eu quem ele era, e que seguia

caminhos singulares".

"Aqui, de três olhos - disse tranqüilizado

o Papa, que de um olho era cego -

estou mais ao corrente das coisas de

Deus que o próprio Zaratustra, e tenho

direito de o estar.

Longos anos o serviu o meu amor, a

minha vontade seguia a sua por toda

parte. Um bom servidor, porém, sabe

tudo e até certas coisas que o seu

senhor oculta a si mesmo.

Era um Deus oculto, cheio de mistérios.

Nem sequer alcançou um filho, senão

por caminhos escusados. As portas da

sua crença encontra-se o adultério.

O que o louva como Deus do amor não

forma juízo bastante elevado do amor

em si.

Esse Deus não queria ser juiz também?

Pois o que ama, ama acima do castigo e

da recompensa.

Quando moço, esse Deus do Oriente

era ríspido e estava sedento de

vingança: criou um inferno para deleite

dos seus prediletos.

Por fim, fez-se velhoe brando e terno e

compassivo, assemelhando-se mais a

um avô do que a um pai, e até mais a

uma avó decrépita.

Para ali estava murcho, sentado ao

calor do lume, preocupado com a

fraqueza das pernas, cansado do

mundo, cansado de querer, e um dia

acabou por se afogar em excessiva

piedade.

"Antigo Papa - interrompeu Zaratustra -

viste isso com os teus próprios olhos?

Pode muito bem ter sido assim; assim e

também doutra maneira. Quando os

deuses morrem, é sempre de várias

espécies de mortes.

Mas desta ou doutra maneira, desta ou

daquela, já não existe! Era contrário ao

gosto dos meus olhos e dos meus

ouvidos: eu nada pior queria

imputar-lhe.

A mim agrada-me tudo o que tem o

olhar claro e fala francamente. Ele,

porém, bem o sabes antigo sacerdote,

tinha qualquer coisa da tua raça, dos

sacerdotes: era contraditório.

Também era confuso. Quanto nos não

lançou em cara esse colérico, por má

compreensão!

Mas por que não falava ele mais claro?

E se a culpa era de nossos ouvidos,

para que nos deu ouvidos que o

ouvissem mal? Se nos nossos ouvidos

havia lama, quem no-lo pôs lá?

Saíram mal demasiadas coisas a esse

oleiro que não concluíra a

aprendizagem. Mas vinga-se nos seus

cacos e nas suas vasilhas porque lhe

tinham saído más, foi um pecado contra

o bom gosto.

Também há um bom gosto na piedade;

esse bom gosto acabou por dizer:

"Levai-nos tal deus! Vale mais não ter

nenhum, vale cada qual criar os

destinos ao seu capricho, vale mais ser

doido,. vale mais ser deus uma pessoa

mesma!"

"Que ouço? - disse neste ponto o Papa,

apurando o ouvido. - Zaratustra, com

essa incredulidade, és mais piedoso do

que julgas. Deve ter havido algum deus

que te converteu à tua impiedade.

Não é a tua própria impiedade que te

impede de crer em um Deus? E a tua

excessiva lealdade ainda te há de

conduzir mais além do bem e do mal.

Vês o que te está reservado! Tens

olhos, mão e boca que estão

predestinados a abençoar toda a

eternidade. Não se abençoa Só com a

mão. A teu lado, embora queiras ser o

mais ímpio, percebe-se um secreto

aroma de dilatadas bênçãos, um odor

benéfico e ao mesmo tempo doloroso

para mim.

Permite-me ser teu hóspede uma só

noite, Zaratustra! Em nenhuma parte da

terra me sentirei melhor que a teu lado!"

" Amém – assim seja! – exclamou

Zaratustra, admiradíssimo. – Ali em

cima está o caminho que conduz à

caverna de Zaratustra.

Venerando, de boa vontade te levaria eu

mesmo porque estimo todos os homens

piedosos. Agora, porém, chama-me

para longe de ti um grito de angústia.

Nos meus domínios não deve suceder

nada mau a ninguém: a minha caverna

é um bom porto. E eu quereria,

sobretudo, pôr em terra firme e com o

pé direito todos os tristes.

Quem poderá, contudo, arrancar-te dos

ombros essa melancolia? Eu sou

demasiado débil para isso. Na verdade

muito precisaríamos esperar para que

alguém ressuscitasse o teu deus.

Que esse Deus antigo já não é vivo;

está morto e bem morto".

Assim falou Zaratustra.

4.2 O Homem Mais Feio

O encontro com o homem mais feio explica como e por que Deus foi morto. Também temos o registro de seu assassino. O homem mais Feio também é convidado de Zaratustra.

O Homem mais Feio

E Zaratustra continuou a correr pelas

montanhas e pelas selvas, e os seus

olhos esquadrinhavam sem cessar; mas

em nenhuma parte via aquele que

queria ver, o que clamava por socorro,

atormentado por profunda angústia.

Caminhava, todavia, muito satisfeito e

cheio de gratidão. "Que boas coisas -

disse - este dia me tem dado, para me

indenizar de o ter começado tão mal!

Que singulares interlocutores encontrei!

Hei de ruminar muito tempo as suas

palavras como se fossem bons grãos;

os meus dentes devem triturá-las e

moelas muitas vezes, até me correrem

pela alma como leite".

Mas quando deu volta a outro penhasco

do caminho, mudou de súbito a

paisagem, e Zaratustra entrou no reino

da Morte. Surgiam ali negros e

vermelhos penhascos, e não havia erva,

árvores, nem canto de pássaros. Que

era um vale que todos os animais

desprezavam, até as feras; só uma

espécie muito feia de grandes cobras

verdes ia ali morar, quando envelhecia.

Por isso os pastores chamavam aquele

vale "Morte das serpentes".

Zaratustra abismou-se em negras

recordações, porque lhe parecia ter-se

já encontrado naquele vale. E

preocuparam-lhe o espírito coisas tão

pesadas que foi demorando, demorando

o passo até que acabou por parar e

fechar os olhos.

Quando os abriu, viu qualquer coisa

sentada à beira do caminho, qualquer

coisa onde com muito trabalho se

reconheceria a forma de um homem,

qualquer coisa inexprimível. E

Zaratustra sentiu enorme vergonha de

seus olhos terem visto semelhante

coisa. Ruborizando-se até à raiz dos

cabelos, afastou os olhos e ergueu o pé

para se retirar daquele lugar nefasto.

Mas então se povoou de um ruído o

tétrico deserto: porque se elevou do solo

um gorgolejo como o que faz a água de

noite em campos tapados; esse ruído

acabou por se tornar voz humana e

humana palavra. A voz dizia:

"Zaratustra! Zaratustra! Adivinha o meu

enigma! Fala! Qual é a vingança contra

a testemunha?

Eu atraio-te para trás; aqui há gelo

resvaladiço. Cuidado, cuidado, não se te

quebrem as pernas de orgulho!

Julgas-te sábio, orgulhoso Zaratustra!

Pois adivinha o enigma, adivinha o

enigma que eu sou.

Fala pois: quem sou eu?"

Mas quando Zaratustra ouviu estas

palavras, que pensais se lhe passou na

alma?

Viu-se dominado pela compaixão,

e abateu-se de súbito como um

carvalho que, depois de resistir muito

tempo aos lenhadores, cai de repente e

pesadamente com espanto dos próprios

que queriam abatê-lo.

Logo, porém, se ergueu do solo e o

semblante tornou-se-lhe duro.

"Conheço-te bem - disse com voz de

bronze: - és o assassino de Deus.

Deixa-me ir embora.

Não suportaste aquele que te via

sempre e até ao mais íntimo teu, mais

feio dos homens! Vingaste-te dessa

testemunha!"

Assim falou Zaratustra, e quis ir-se

embora; mas o inexprimível segurou-o

pela roupa e começou a gorgolejar de

novo e a procurar as suas expressões:

"Detém-te!", disse por fim.

"Detém-te! Não passes de largo!

Compreendi qual foi o machado que te

derrubou!

Glória a ti, Zaratustra, que estás outra

vez de pé!

Adivinhaste - sei-o perfeitamente -

quais eram os sentimentos do que

matou Deus - do assassino de Deus -

Fica. Senta-te aqui ao meu lado; não

será em vão. A quem queria eu

encontrar senão a ti? Fica e senta-te.

Mas não olhes para mim. Respeita

assim... a minha fealdade!

Perseguem-me: agora tu és o meu

último refúgio. Não é que me persigam

com o seu ódio ou seus esbirros. Ó!

Zombaria então de tais perseguições!

Estaria orgulhoso e satisfeito.

Todo o triunfo não tem Sido até aqui dos

que foram bem perseguidos?

E o que persegue bem facilmente

aprende a seguir - não vai já... atrás?

Trata-se, porém, da sua compaixão...

Da compaixão deles é que eu fujo ao

vir-me refugiar em ti. Defende-me,

Zaratustra, último refúgio meu, único ser

que me adivinhou.

Adivinhaste os sentimentos daquele que

matou Deus.

Fica! E se és tão impaciente te que te

queiras ir embora, não tomes o caminho

por onde eu vim. Esse caminho é mau,

Tens-me rancor porque há muito tempo

que te falo imprudentemente? Porque te

dou conselhos? Fica sabendo que eu, o

mais feio dos homens, sou também o

que tem o pé maior e mais pesado.

Todo o caminho que pisei se tornou

mau. Eu esmago e destruo os caminhos

todos.

Bem vi, porém, que passavas por diante

de mim em silêncio e que te

envergonhavas: nisso conheci

Zaratustra.

Outro qualquer atirar-me-ia uma

esmola, a sua compaixão com o olhar e

a palavra. Eu, porém, não sou bastante

mendigo para isso: adivinhaste. Eu sou

demasiado rico para isso, rico em coisas

grandes e formidáveis, as mais feias e

inexprimíveis! A tua vergonha

honra-me, Zaratustra!

Difícil me foi sair da multidão dos

compassivos para encontrar o único que

ensina hoje que "a compaixão é

importuna" - para te encontrar a ti,

Zaratustra.

Seja piedade de um Deus ou piedade

dos homens, a compaixão é contrária ao

pudor. E não querer auxiliar pode ser

mais nobre do que essa virtude que

assalta pressurosa e solícita.

Mas a isso mesmo é que toda a gente

pequena chama hoje virtude a

compaixão; tal gente não guarda

respeito à grande desgraça, nem à

grande felicidade nem à grande queda.

Deito o meu olhar por cima dos

pequenos, como o de um cão, por cima

dos buliçosos rebanhos de ovelhas. É

gentinha de boa vontade, parda e

peluda.

Tempo demais se deu razão a essa

gentinha, e assim se acabou por se lhes

dar igualmente o poder. Agora pregam:

"Só o que a gentinha acha bom, é que é

bom".

E hoje chama-se "verdade" ao que dizia

o pregador, que saiu das fileiras dessa

gente, aquele santo raro, aquele

advogado dos pequenos que afirmava

por si só "eu sou a verdade".

E aquele homem imodesto que, ao dizer

"eu sou a verdade", pregou um erro

mais que mediano, foi a causa de se

pavonearem há muito as pessoas

pequeninas.

Acaso se respondeu alguma vez mais

cortesmente a uma pessoa falha de

modéstia?

E tu, Zaratustra, todavia, passaste por

diante dele dizendo:

"Não! Não! Mil vezes não!"

Tu deste a voz de alarme contra o seu

erro; foste o primeiro a dar a voz de

alarme contra a compaixão; não a

todos, nem a nenhum, mas a ti e à tua

espécie.

Envergonhas-te da vergonha dos

grandes sofrimentos; e quando dizes:

"Da compaixão vem uma grande nuvem,

alerta, humanos". E quando ensinas:

"Todos os criadores são duros, todo o

grande amor está por cima da sua

compaixão", parece-me conheceres

bom os sinais do tempo, Zaratustra!

Mas tu mesmo... livra-te também da tua

própria piedade. Que há muitos que se

encaminham para ti, muitos dos que

sofrem, dos que duvidam, dos que

desesperam, dos que se afogam e

gelam...

Ponho-te também em guarda contra

mim. Adivinhas o meu melhor e o meu

pior enigma, adivinhaste-me a mim

mesmo e o que tenho feito. Conheço o

machado que te derruba.

Foi preciso, contudo, ele morrer: via

com olhos que tudo viam; via as

profundidades e os abismos do homem,

toda a sua oculta ignomínia e fealdade.

A sua compaixão não conhecia a

vergonha; introduzia-se-me nos mais

sórdidos recantos. Foi mister morrer o

mais curioso, o mais importuno, o mais

compassivo.

Sempre me via; quis vingar-me de tal

testemunha ou deixar de viver.

O Deus que via tudo, até o homem,

esse Deus devia morrer! O homem não

suporta a vida de semelhante

testemunha".

Assim falava o homem mais feio. E

Zaratustra levantou-se e dispôs-se a

partir, porque estava gelado até à

medula, e disse:

"Tu, inexprimível, puseste-me em

guarda contra o teu caminho. Para te

recompensado-te o meu. Olha: ali em

cima fica a caverna de Zaratustra.

A minha caverna é grande e profunda e

tem muitos recantos; o mais escondido

encontra lá o seu esconderijo. E perto

há cem rodeios e cem fugas para os

animais que se arrastam, revolteiam e

saltam.

Tu, que te vês repelido e que te

repeliste a ti mesmo, não queres viver

mais entre os homens e da compaixão

dos homens? Pois bem! Faz como eu!

Assim aprenderás também comigo, só o

que procede aprende.

E fala logo e em primeiro lugar aos

meus animais! Sejam para nós dois os

verdadeiros conselheiros, o animal mais

ativo e o animal mais astuto!"

Assim falou Zaratustra, e prosseguiu o

seu caminho ainda mais meditabundo e

vagaroso do que dantes, porque se

interrogava sobre muitas coisas a que

lhe era difícil responder.

"Como o homem é mesquinho! -

pensava interiormente. - Que feio, que

agonizante e quão cheio de oculta

vergonha!

Dizem que o homem se ama a si

mesmo! Ai! Como deve ser grande esse

amor próprio!

Quanto desprezo tem contra si!

Também aquele se ama

desprezando-se: é para mim um grande

desprezador.

Nunca tropecei com ninguém que se

desprezasse mais profundamente. Isto

também é elevação. O, infortúnio!

Talvez fosse aquele o homem superior

cujo grito ouvi!

Eu amo os grandes desprezadores. Mas

o homem é uma coisa que deve ser

superada".

Assim falou Zaratustra.

4.3 Da Ciência

Zaratustra expõem seu desencanto com a ciência e oferta sua critica ao que chama de filha do medo.

Da Ciência

Assim cantava o feiticeiro, e todos os

que estavam ali reunidos caíram como

pássaros na rede da sua astuta e

melancólica voluptuosidade.

O único que se não deixou apanhar foi o

consciencioso, que. arrebatando-lhe a

harpa das mãos. gritou: "Deixa entrar o

ar puro! Mandai entrar Zaratustra!

Infeccionas esta caverna e tornas a

atmosfera sufocante, maligno feiticeiro!

Homem falso e ardiloso, a tua sedução

conduz a desejos e a desertos

desconhecidos! E, ai de nós, se homens

como tu dão em falar da verdade com

ares importantes!

Ai de todos os espíritos livres que não

estejam precavidos contra semelhantes

feiticeiros! Podem despedir-se da sua

liberdade, porque tu aconselhas o

regresso as prisões e a elas conduzes!

No teu lamento, demônio melancólico,

percebe-se um reclamo: pareces-te

com aqueles cujo elogio da castidade

impele secretamente à voluptuosidade!"

Assim falou o consciencioso, mas o

velho feiticeiro olhava em seu derredor,

gozando a sua vitória, e devido a isso

suportava a cólera do consciencioso.

"Cala-te - disse com voz modesta -, as

boas canções requerem bons ecos;

depois de boas canções é preciso haver

silêncio durante um bom espaço de

tempo.

Assim fazem todos os homens

superiores.

Tu, porém, pouco compreendeste do

meu canto, provavelmente! Tens pouco

espírito encantador".

- "Honras-me - tornou o consciencioso

- distinguindo-me assim. Mas que

vejo? Vós, ainda continuais aí

assentados com olhares ansiosos? Ó,

almas livres, que foi feito então da vossa

liberdade?

Creio que vos deveis parecer com

aqueles que por muito tempo vêm bailar

raparigas nuas - até as vossas próprias

almas se põem a bailar!

Deve haver em vós, homens superiores,

muito mais do que aquilo a que o

feiticeiro chama o seu maligno espírito

de encantamento e de fraude; de certo

somos diferentes.

E na verdade, antes de Zaratustra tornar

à sua caverna, falamos e pensamos

juntos o suficiente para eu saber que

somos diferentes.

Vós e eu buscamos também aqui em

cima coisas diferentes. Pois eu procuro

mais certeza; por isso me acerquei de

Zaratustra, que é a torre e a vontade

mais firme, hoje que tudo vacila e treme

na terra.

Quanto a vós, porém, basta-me ver os

olhos que fazeis para apostar que

procurais antes incertezas,

estremecimentos, perigos, tremores de

terra.

Parece-me - desculpai-me a

presunção, homens superiores -,

parece-me que desejais a vida mais

lastimável e perigosa, a que a mim me

inspira temor: a vida dos animais

selvagens, os bosques, as cavernas, as

montanhas abruptas e os labirintos. E

os que mais vos agradam não são os

que conduzem para fora do perigo, mas

os que levam para fora de todos os

caminhos, os sedutores. Contudo se tais

anelos são verdadeiros em vós, a mim

parecem-se de toda a maneira

impossíveis.

Que o sentimento inato e primordial é o

temor; pelo temor se explica tudo; o

pecado original e a virtude original.

A minha própria virtude nasceu do

temor; chama-se ciência.

E o temor que mais tem logrado no

homem é o temor aos animais

selvagens, incluso o animal que o

homem oculta e receia em si, aquele a

que Zaratustra chama "a besta interior".

Este estranho temor, por fim requintado

e espiritualizado, parece-me que hoje

se chama ciência". Assim falava o

consciencioso; mas Zaratustra, que

nesse mesmo instante tornava à

caverna e que ouvira e adivinhara a

última parte do discurso, atirou ao

consciencioso um punhado de rosas,

rindo-se das suas "verdades". -"Quê? -

exclamou. - Que acabo de ouvir?

Parece-me que estás louco deveras, ou

então que o estou eu; vou já virar a tua

verdade de cima para baixo.

Que o temor é a nossa exceção.

Em compensação, o valor e a paixão

pelas aventuras, pelo incerto, pelas

coisas ainda não apontadas: o valor

parece-me toda a história primitiva do

homem.

Invejou e arrebatou aos animais mais

selvagens e valorosos todas as suas

virtudes; só assim se fez homem.

Esse valor, apurado e espiritualizado

por fim, esse valor humano com asas de

águia e astúcia de serpente, parece-me

chamar-se hoje".

"Zaratustra!" - exclamaram

simultaneamente todos os ali reunidos,

soltando uma gargalhada; mas qualquer

coisa se elevou deles que se

assemelhava a uma nuvem negra.

Também o feiticeiro se pôs a rir e disse

maliciosamente: "Arre! Foi-se-me o

espírito maligno! Eu vos preveni contra

ele, quando vos dizia que era um

impostor, um espírito mentiroso e

fraudulento .

Sobretudo quando se mostra a nu. Que

posso eu fazer, porém, contra seus

ardis? Acaso fui eu que o criei e quem

criou o mundo?

Vamos! Tornemos a ser bons e joviais!

E conquanto Zaratustra franza o

sobrolho - olhem-no! tem-me aversão!

- antes de chegar a noite aprenderá

outra vez amar-me e a elogiar-me; não

pode estar muito tempo sem fazer

doidices destas...

Este ama os seus inimigos: dos que

tenho encontrado é quem melhor

conhece tal arte. Mas vinga-se deles...

nos amigos!"

Assim falou o velho feiticeiro, e os

homens superiores aclamaram-no; de

forma que Zaratustra rodeando, foi

estreitando maliciosa e amoravelmente

as mãos dos seus amigos, como quem

tem de que se desculpar; mas, quando

chegou à porta da caverna, tornou a

ansiar pelo ar puro de fora e a

companhia dos seus animais, e quis

sair.

4.4 O Sinal

Finaliza a obra a renovação da esperança de Zaratustra. O sinal de que o super-homem não tarda. Está por vir. Está próximo.

O Sinal

Na manhã seguinte, Zaratustra saltou

da sua jazida, apertou os rins e saiu da

caverna, ardente e vigoroso, como o sol

matutino que sai dos sombrios montes.

"Grande astro - disse como noutra

ocasião -, olho profundo de felicidade,

que seria desta se te faltassem aqueles

a quem iluminas? E se eles

permanecessem em seus aposentos

quando tu já estás desperto e vens dar

e repartir, como se te feriria o pudor!

Pois bem! Estes homens superiores

dormem enquanto eu estou acordado.

Não são meus verdadeiros

companheiros! Não é a eles que espero

aqui nas minhas montanhas.

Quero principiar o meu labor, o meu dia,

mas eles não compreendem quais os

sinais da minha alvorada; os meus

passos não são para eles uma voz

despertadora.

Dormem ainda na minha caverna, ainda

o seu sono saboreia os meus cantos de

embriaguez. Aos seus membros falta

ouvido que me escute, ouvido

obediente".

Disse Zaratustra isto ao seu coração

quando o sol nascia. Depois dirigiu para

as alturas um olhar interrogador porque

ouvia por cima de si o chamado

penetrante da sua águia. "Bem! - gritou

para cima. - Assim me agrada e

convém. Os meus animais estão

acordados, porque eu estou acordado.

A minha águia acordou e saúda o sol

como eu. Com as suas garras apanha a

nova luz. Vós sois os meus verdadeiros

animais; tendes a minha afeição.

Faltam-me, porém, os meus

verdadeiros homens!"

Assim falou Zaratustra, quando de

repente se sentiu rodeado por uma

infinidade de aves que revoavam em

torno dele; o ruído de tantas asas e o

tropel que lhe rodeava a cabeça eram

tais que cerrou os olhos. E na verdade

sentiu cair sobre ele qualquer coisa

assim como uma nuvem de setas

disparadas sobre um novo inimigo! Mas

não! Era uma nuvem de amor sobre um

amigo novo.

"Que sucederá?", perguntou a si mesmo

assombrado Zaratustra, e deixou-se

cair vagarosamente na pedra grande

que havia à entrada da sua caverna.

Agitando, porém, as mãos em torno de

si e por cima e por baixo de si, para se

subtrair às carícias das aves,

sucedeu-lhe uma coisa ainda mais

singular, e foi que, sem dar por isso, pôs

a mão sobre quentes e fartas

guedelhas, e ao mesmo tempo se ouviu

um rugido, um meigo e prolongado

rugido de leão. "Chega o sinal", disse

Zaratustra, e o coração

transmudou-se-lhe. E viu diante de si,

estendido a seus pés, um corpulento

animal ruivo, que encostava a cabeça

aos seus joelhos e se não queria afastar

dele como um cão afetuoso que torna a

encontrar o antigo dono. Mas as

pombas não eram menos carinhosas

que o leão e, de cada vez que alguma

lhe passava pelo focinho, o leão sacudia

a cabeça e punha-se a rir.

Vendo tudo isto, Zaratustra só disse

uma coisa: "Estão perto os meus filhos".

E depois emudeceu completamente;

mas sentia o coração aliviado, e dos

seus olhos corriam lágrimas que lhe

banhavam as mãos. E ali permanecia

imóvel, sem se preocupar com coisa

alguma, sem sequer se defender dos

animais. Entretanto, as pombas voavam

de um lado para outro, pousavam-lhe

nos ombros, acariciavam-lhe os

brancos cabelos, e eram infatigáveis na

sua ternura. E o leão lambia

incessantemente as lágrimas que

corriam pelas mãos de Zaratustra,

rugindo e rosnando timidamente. Eis o

que fizeram estes animais.

Tudo isto poderia durar muito ou pouco

tempo, porque, falando propriamente,

na terra não há tempo para coisas tais.

Entrementes, tinham os homens

superiores acordado na caverna, e

dispunham-se a ir em procissão ao

encontro de Zaratustra, para o saudar,

porque já haviam reparado na sua

ausência. Quando chegaram, porém, à

porta da caverna, o leão, ao ouvir-lhes

os passos, afastou-se rapidamente de

Zaratustra e precipitou-se para a

caverna rugindo furiosamente.

Ouvindo-o rugir, os homens superiores

começaram a grita como uma só boca,

e, retrocedendo, desapareceram num

abrir e fechar de olhos.

Por seu lado, Zaratustra, aturdido e

distraído, ergueu-se do seu assento,

olhou em roda, assombrado,

interrogou-se, refletiu e permaneceu

sozinho. "Mas, que foi que ouvi? -

disse, afinal, lentamente. - Que acaba

de me suceder?" E, recuperada a

memória, compreendeu o que sucedera

entre a véspera e o dia em que se

encontrava. "Aqui está a pedra onde

ontem pela manhã me sentei – disse

cofiando a barba -, aqui se abeirou de

mim o adivinho, e ouvi pela primeira vez

o grito que acabo de ouvir, o grande

grito de angústia.

Homens superiores, a vossa angustia foi

o que ontem pela manhã me predisse o

velho adivinho; quis atrair-me à vossa

angústia para me tentar. "Ó! Zaratustra

– disse-me ele - venho aqui induzir-te

ao último pecado."

"Ao meu último pecado? - exclamou

Zaratustra rindo-se das suas próprias

palavras. - Que será que ainda me está

reservado como último pecado?"

E outra vez se concentrou em si

mesmo, tornando a sentar-se na pedra

para refletir.

De repente ergueu-se:

"Compaixão! A compaixão pelo homem

superior! - exclamou, e o semblante

tornou-se-lhe da mármore.

Ora!

Já se vai esse tempo!

Que importam a minha paixão e a minha

compaixão? Acaso aspiro à felicidade?

Eu aspiro à minha obra!

Chegou o leão, os meus filhos não

tardam; Zaratustra está sazonado;

chegou a minha hora.

Esta é a minha alvorada; começa o meu

dia; sobe, pois, sobe, Grande Meio-dia!"

Assim falou Zaratustra, e afastou-se da

caverna, ardente e vigoroso, como o sol

matinal que surge dos sombrios

CONCLUSÃO

Ao expormo-nos ao intelecto de Nietzsche percebemos o quanto ainda temos de nos superar. O quanto ainda resta em nos de medo, preconceito, raiva, rancor. O quando disso tudo ainda ocultamos dentro de nós. Zaratustra não propõe respostas. O que se percebe na sua leitura são inquietantes questões trazidas a tona. Um desmascarar-se, um desnudar-se. Parece este o principio proposto para que se encontre o super-homem.

A construção do próximo homem, segundo a visão de Nietzsche, deve ocorrer sobre uma base limpa, isso não quer dizer que esta base seja bonita, quer dizer que não está permeada por regras. Não está permeada por convenções. Desta base emerge o cheiro da humanidade, para alguns, carece de perfume, para outros é fétido, mas este é o cheiro do ser humano. Mascará-lo e distanciar-se de uma solução adulta. Logo, o afastamento do super-homem. Parece-nos esta a denuncia de Nietzsche.

Bibliografia

NIETZSCHE, Friedrich. Para Além do Bem e do Mal. Martin Claret.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Martin Claret.

Porto Alegre, 9 de Outubro de 2005

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